quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

9/18/2006 07:07:39 AM

FAXINA

Para o escritor David Sedaris, que já trabalhou em limpeza de casas

Pintura de Peter Blake


Fabrício Carpinejar





Quando uma faxineira vem limpar a casa, eu me torno hóspede. Dei-me conta disso. Ela age com uma velocidade impressionante, mexendo os panos, a vassoura e o aspirador. Localiza os detergentes ao virar os ouvidos. Movimenta o balde com a elasticidade de um terceiro braço. Entra obcecada a terminar logo. Não há segredo para ela, esconderijos para mim. Caminha em sua solidão com a naturalidade de roupas íntimas. Espana os móveis, encera os bidês, como se estivesse lendo um livro e ninguém, ninguém estivesse a olhando. Assim que minha faxineira entra, assume meu endereço.


Fico com a impressão de que estou incomodando. Um intruso. Estorvo. Ela se aproxima de onde estou como uma ameaça. O apartamento nunca é suficientemente espaçoso para conter seu avanço. Pergunto sempre se ela precisa de alguma coisa. Questiono como estão os filhos e o marido. Não suporto o silêncio. Faço café para ela. Tento agradar. Não encerro meus textos. Embaralho-me ao telefone. Peço emprestado o computador. Ela treina o desembaraço e eu, uma retração perpétua. Será que tenho culpa pela baderna do apartamento e me diminuo em criança temendo o castigo? Pode ser. Quando pequeno, era fácil esconder quando derramava suco no sofá. Virava as almofadas.


A faxineira é um Messias toda a semana. Ao telefonar que não poderá ir, estranhamente respiro a mais repentina satisfação, pouco me importando de que modo acalmarei a bagunça. É um alívio não mudar minha rotina. Não me estrangeirar com sua vigilância.


A entrada da faxineira no apartamento lembra a separação de um casal. Eles ainda estão morando juntos, mas não se comunicam. Respeitam seus territórios. Só que ambos estão loucos de diferenças, loucos por dizer, loucos para se arrepender, loucos para se abençoar com desaforos. Mas por achar que não é o momento certo, por achar que a sujeira ainda é muito grande, que a sobrevivência é a prioridade, emudecem com gentilezas e educação. Após tanta intimidade, após tantos anos de cumplicidade, protegem-se na formalidade. São visitas habituadas a permanecer conformadas. O quarto dedicado ao sexo vira um hotel macrobiótico.


Um dos dois - com o tempo - decide ser a faxineira. Enquanto um finge que nada mudou, o outro tira as cadeiras e a mesa do lugar, desmorona a pilha de roupas, procura os restos, as nódoas e as manchas das mentiras e terá que mostrar que há conserto ou não há o que fazer. É sempre o mais corajoso e desconfiado. O que enfrenta a rinite alérgica e abre as janelas. O que esvazia a geladeira para encontrar o que está estragado. Vai esfolar os joelhos, derramar-se no solo para esfregar o piso, mostrará que a gordura não sai e pedirá explicações do que aconteceu.


Não se suporta uma faxineira porque ela conhece nossos defeitos. Não se suporta testemunhas de nossa precariedade. Tem gente que não casa para não ser descoberta. Tem gente que não se separa para não ser desmascarada. Tem gente com pavor de intimidade, a que existiu ou a que existirá com a limpeza.


No fim do dia, após a faxina, entende-se que a falta de amor denuncia mais do que o amor.

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