quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

9/10/2006 09:28:16 AM

ESTADO DE S.PAULO, CADERNO CULTURA, página D5

Domingo, 10 setembro de 2006



CONTRA A ESPERANÇA PASSIVA

Menalton Braff retorna ao gênero que o premiou com o Jabuti e acentua solidão de personagens





Fabrício Carpinejar

Especial para o Estado


Menalton Braff já foi outro: Salvador dos Passos. Pseudônimo com que publicou seus dois primeiros livros. Com os contos de À Sombra dos Ciprestes, Prêmio Jabuti 2000 - Livro do Ano Ficção, assumiu seu nome, tão estranho e nórdico como um viking exilado. Que parece mais pseudônimo do que seu pseudônimo anterior. O conto significa sempre ao autor uma guinada. Com os contos, abandonou o pseudônimo em 1999 e se fez conhecido. Depois de três romances, volta ao gênero que o consagrou. E melhor do que nunca - acentuando as possibilidades de narrar, ora expressionista, realista, lírico, no compasso combinado entre denúncia, suavidade e mergulho psicológico.


É sobre a perspectiva do outro, que Menalton lança A Coleira no Pescoço (Bertrand Brasil, 160 págs., R$ 25). Transparece uma obsessão em retratar seres solitários. As tramas não se limitam a emitir opiniões, desconfortam como um arroto, algo rude e trancado. Não confortam como um suspiro ou um bocejo. Os habitantes de A Coleira do Pescoço não são seres desajustados, mas personagens que estão tentando ganhar a vida dentro das regras, que se ferram e não buscam compreender o que houve de errado, que não explodem e embrulham as mágoas sociais para comer frias no quarto. Sofrem com a dependência do emprego, a obrigação financeira de sustento, e não se arriscam a pensar diferente, aceitam a brutalidade das relações como um pré-requisito.


Vinte narrativas curtas e uma linha harmônica a penetrar em cada história: a solidão incomunicável. Praticamente em todos os contos, sabe-se mais dos personagens por aquilo que pensam do que por aquilo que fazem. São assombrações da palavra. Menalton escreve em terceira pessoa, como se estivesse narrando na primeira pessoa. Grudado na personagem, em tal medida que só enxerga o que a personagem está enxergando. Um crente, Daniel, pretende converter uma puta e se transforma num garoto de programa. Uma noiva acompanha, por fora, a construção da casa que seria dela se não houvesse o rompimento. Uma violoncelista sofre os horrores físicos do ensaio num jogo sexual com o marido. A realidade é curta perto das hipóteses imaginadas pelos protagonistas. Eles se antecipam no sofrimento, para sofrer duas vezes. Menalton faz um anticonto, no sentido de que a história subterrânea sobrepuja a história visível. Não testam os limites, seguem ordens. Seja da família, de Deus, da educação. Se o velho e o cachorro morrem atropelados por viverem amarrados no primeiro texto que confere o título à obra, a maioria das caracterizações da coletânea vive atropelada por se manter amarrada às convicções.


Menalton desenha figuras que são vocacionadas ao isolamento. O zelador e o vigia, por exemplos. Presos ao fim por uma coleira invisível, que é a crença que a vida pode dar certo se atenderem os preceitos do serviço.


O primeiro desenvolve com o cachorro uma convivência leal e cega, a ponto de humanizar o cachorro e cobrar atitudes. A conseqüência é que ele vira um animal, preocupado em tossir para não atrofiar sons humanos e coloca a amizade com o bicho abaixo de sua sobrevivência profissional. O segundo aceita um emprego, sem nunca conhecer o nome de seu patrão. Em ambos os casos, há uma resignação brutal, um voto inútil no dia seguinte, que as coisas vão melhorar caso não ocorra mudança de conduta.


O escritor assume um olhar minoritário da classe média baixa. Nos romances, desenvolvia a estranheza da normalidade, indo para o lado da corda mais frágil que arrebenta com o tempo e a velhice. Que Enchente me Carrega? (2002) contava as agruras do sapateiro Firmino, perdendo clientela e se tornando uma profissão extinta. Na Teia do Sol (2004), acompanhava o esconderijo de um militante político disfarçado de horticultor no Nordeste, para fugir da repressão militar. Enquanto Salvador de Passos, em Janela Aberta (1984), oferecia a visão adoentada de um desempregado paulista, que não conseguia conter o deslumbramento de consumo de sua filha adolescente.


Seus contos prolongam o mesmo mal-estar. Assim é emblemática a demissão de Rita em um dos contos, por não ter sorrido em seu trabalho, cláusula que constava no contrato de admissão. Do mesmo modo, o caminhoneiro, atolado de atrasos e pressão, sensibiliza-se com a brisa e decide que é um argumento suficiente para seguir viagem. A esperança é observada por Menalton Braff como um defeito, por renovar a passividade. Nesse aspecto, o destino do pintor desmemoriado na delegacia será igual ao da Anita, impotente, depois do assédio do padrasto. A consciência não faz diferença nenhuma.


O viés político do autor é de ordem estética, não se propõe a fazer propaganda de nada que não seja literatura. É interessante como já criou, em seu décimo livro, marcas estruturais de sua voz e estilo, como os dois pontos, culminando uma descrição com uma imagem poética.


"O suor secara por debaixo da camisa: o tempo nunca parara de escorrer."


Com um vocabulário levemente arcaico, a linguagem tende a um barroco, mas não estiliza o estilhaçamento. Trata-se de um barroco compartimentado em diferentes ritmos. Encontram-se momentos de fluxo de consciência com passadas mais ponderadas. Não é de se esperar um único escritor, há vários escritores brigando dentro de Menalton.


Além da coragem crítica de mexer preconceitos, o contista conversa de igual para igual com a tradição literária e revigora referências. Em Os Sapatos do Meu Pai, recria versão feminina de A Terceira Margem de um Rio, de Guimarães Rosa, uma tarefa quase impossível. Traz a obstinada espera de uma vendedora pela volta do pai pródigo, a partir da lembrança do par de calçados. Pode ser recortada para antologias a comovente cena em que o pai finalmente se aproxima e a filha, então, pensa: "Agora não adianta mais, porque agora já sou."


Semelhante processo é percebido em De cima do Muro, releitura do Barão nas Árvores, de Italo Calvino. Teodoro abandona a família e passa a morar no muro, como observador privilegiado do tempo e das manias dos vizinhos. Ele não tem ao certo o motivo que o faz estar ali. Espera descobrir o motivo, que não chegará com a morte, porque talvez ele nunca tenha existido.


Fabrício Carpinejar é poeta e jornalista, autor de O Amor Esquece de Começar

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