quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

8/3/2005 09:54:25 AM

A BELEZA DORMINDO

Pintura de Modigliani


Fabrício Carpinejar





Tenho insônia, resistência, força de vontade, consigo me controlar e abdicar de uma torta de nozes, de um mousse de chocolate, de um quindim. Claro que com muito esforço e concentração. Mas é impossível resistir a minha mulher dormindo. Pode testar com a sua. Tente assistir a um filme na cama. Ela pedirá de propósito para abaixar o volume da tevê. Você aceitará o apelo para aumentá-lo depois, quando não estiver controlando a imagem. Ela deita de lado, como uma árvore aprendendo a assobiar. Sussurra baixinho. Não é ronco. É respiração densa, uma sinfonia do seu batimento. Um vento com estilo. Uma brisa depois da porta. Uma música sendo composta. O pescoço aberto para o seu rosto, espaço ideal de concha. Os cabelos penteados pelos lençóis. A nuca perfumada do banho. Os pés dela no fundo das cobertas como um leme alterando a direção dos seus. Tudo meticulosamente planejado para desistir das legendas. Um convite inaceitável do escuro.


Teimoso, avança até a metade da fita e algo estranho acontece. O diretor, os atores, o enredo que comentou ao longo da semana tornam-se secundários. Difíceis. Incompreensíveis. Os três travesseiros já não serão suficientes para mantê-lo sentado. Há um ciúme do sono dela, uma inveja imperdoável. Ela ainda ri espaçadamente para aumentar sua curiosidade. Solta palavras apressadas. Resmunga relâmpagos. Aproxima-se da boca para escutar com precisão e calma. Os lábios parecem contornados de lápis de cor, tamanha a euforia das linhas. Perguntará a si mesmo: "O que ela estará sonhando? Será comigo? Será que existo mais nela do que em mim?" Nesse momento, você caiu na cilada da beleza descansando. Não existirá volta ao filme.


Seus olhos passam a desistir, avermelhados da leitura do corpo feminino. Buscará em vão aumentar as letras dos cílios, porém o som das calhas é invencível. O som de uma mulher respirando é melhor do que o barulho da chuva. Se não tem óculos para tirar ficará pior. Não contará com um sinal de abandono de causa. É como capotar com o livro no peito (o livro sempre foi meu sutiã de noite). Adormecerá automaticamente, tomado de doce anestesia. Perceberá que quem manda é ela: capaz de seduzi-lo inclusive dormindo.

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