quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

8/31/2004 08:34:21 PM

A POESIA ANTI-HORÁRIO DE CONTADOR BORGES

Em "O Reino da Pele", o autor paulista apresenta versos cifrados e enigmáticos, em declarada resistência ao fácil


Fabrício Carpinejar*


Augusto Contador Borges é um poeta da imagem pura, do salto, um ser da linguagem. Não se vale do pensamento para se explicar. Não é um autor da visão, mas da alucinação. Deforma o mundo lentamente para formar o seu próprio mundo. É de uma linhagem selvagem, indômita, surreal, que perturba e não reforça certezas, evocando a "seqüência de brumas" do francês René Char (Contador traduziu Nu perdido e outros poemas) e as raízes negras e as poções de terror do português Herberto Helder. Ratifica a crença desse último, da criação como força magnética das palavras e da literatura como luta contra a servidão da metáfora.


O Reino da Pele (Iluminuras, 78 páginas, 2003) é um livro de gravuras orais, metáforas soltas, onde o corpo é concebido como um músculo ora da alegria, ora da dor, mas sempre intolerável e mutante. O corpo não se define. Não se nomeia. O ensaísta e tradutor Contador Borges, em seu segundo volume de poemas depois de Angelolatria (1997), penetra na impossibilidade do descanso. Suas descrições irrompem uma sobre às outras, em um mostruário de observações sensuais e tênues. Ao falar da nudez, diz: "acendê-la é tocar num vespeiro de estrelas". Não é permitido ficar parado e tentar captar a intensidade do conjunto. O detalhe, o pormenor, é o que interessa. "Só estamos no escuro/ no começo da pele." A poesia aqui é oleosa, escapa lentamente da significação, propiciando um jogo de adivinhação e de festa imaginativa. Ele não fala pelas coisas, deixa as coisas falarem. O título do livro reforça o reino da pele, mas é o olho o personagem central. A pele do olho, o que não se enxerga. Atua em anamorfose, ciência do olhar invertido. As pálpebras se movem como asas, batendo rápidas. Representam a floração da chama, onde "o suor se atreve a falar pela pele". "Quando se morre/ o estômago/ é a primeira parte/ que se dissolve/ mas e os olhos?/ sei que se fecham/ e sob as pálpebras/ (relaxadas)/ se dilatam/ mas as imagens/ de que são feitos/ as palavras/ também não voltam/ ao lugar/ de onde vieram". Toda poesia exige um retorno, voltar à idéia inicial, ao que estava dito, como um gancho no leitor. Ao contrário, Contador não está interessado em formular idéias, parte sem retornar, sem olhar para trás. "Partir é ferir." Prefere mudar do que recuar. Não diria que há um ato de nudez, de despimento, na obra, e sim de dissipação e aniquilamento, neutralizando a morte e o tempo. Não existe fundo escuro para perceber a dinâmica das mudanças. É a palavra clara contra o fundo claro. "Lavar os olhos/ na luz aguda." Percebe-se um intenso grau de insubordinação, de instabilidade, explorando as possibilidades da realidade além da realidade. Convite para desconhecer, para apagar a intimidade da superfície. Seu principal mecanismo é transpor as diferenças, tornar o corpo, identidade máxima de cada um, em um território anônimo. O escritor favorece a voracidade da brasa, colabora para a expansão em fogo. Arde e não esclarece os rastros. "A pele quer exuberância: um clarão de vinho para o íntimo." Parte da idéia de que a vida consumida permanece sendo vida.


A poética simbólica de Contador Borges corre no sentido anti-horário, avessa à fixação das lembranças, comprazendo-se na gordura da luz, do vazio, do nada. Poesia difícil, cifrada e enigmática, em declarada resistência ao fácil e aos caprichos pedagógicos.


Dividido em O Reino da Pele, Anamorfoses e Sombras e ruínas, a última seção é a menos inspirada, mais problemática pelas redundâncias como "sob a chuva das intempéries". O que fluía naturalmente assume um caráter técnico de manifesto: "O poema tem cílios perfeitos. Mas o tempo da atuação já passou" ou "o desamparo é uma bandeira que se rasga com a página". Os períodos longos e truncados da parte derradeira inibem o sonho, o devaneio, conceituando o que era vôo, professando "modos de ouvir as reticências e as entrelinhas". O livro termina antes do autor, na página 57. E não é um livro qualquer, mas um arroubo de quiromancia, universo autônomo e inconfundível, que areja a poesia brasileira com ousadia e coragem. Contador Borges vem antes da chuva, antes do lamento da água, com seus raios e trovoadas.


* Fabrício Carpinejar é jornalista e poeta, autor de Cinco Marias (Bertrand Brasil, 2004) e Caixa de sapatos(Companhia das Letras, 2003), entre outros.


O reino da pele, de Augusto Contador Borges. Editora Iluminuras, São Paulo, 78 p. Formato 14 x 21 cm. Tel. (11) 3068-9433


(Texto publicado no site Weblivros)

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