quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

8/30/2004 09:02:39 AM

Site Capitu, 29/8/2004


A ILUSÃO DE UM ÓBVIO FEMININO


Caco Ishak

de Belém, especial para o Capitu



Saia de casa, caminhe um pouco pelas vilas e becos das redondezas e procure constatar o óbvio que tantas vezes já ilusoriamente constatou. Reviva os fatos como realmente são, não como sempre aparentaram ser e foram vividos. Descondicione-se. Primeiro passo para se tornar um poeta. Mas, é claro, não existem passos ensaiados para se sair bailando nos salões das palavras. Um poeta simplesmente o é. O resto não passa de farsa, frustração advinda da incapacidade para a prosa. O que não representa, de modo algum, motivo para se desistir da proposição primeira. Retorne ao mais íntimo de seu ser ante o mundo e, então, responda: quanto tempo se passou desde que você deixou de existir? Pergunte para a mulher a seu lado, veja se ela ao menos lhe escuta. Não há mais identidade, não é mesmo? Luzes e outras luzes incessantes nos cegam, não mais iluminam. E desaprendemos as coisas simples e prazerosas que, quando crianças, sabíamos aproveitar, e, não as sabendo mais, impossível se torna ensiná-las aos nossos filhos. Perdemos, assim, o único dom poético inerente a todo ser humano, a aptidão natural para a poesia que é a vida. Feita de coisas simples, sem a necessidade de bytes nem de um único bit, qual um jogo sem maiores complicações para se jogar, nada de combinações de teclas, nada de esconderijos secretos. Cinco Marias, por exemplo, já há algum tempo banido das práticas recreativas infantis metropolitanas. Não há segredos, é só jogar os cinco saquinhos no chão e pegar um sem tocar nos demais. Então, jogue-o para o alto enquanto você pega um dos outros quatro e segure-o na volta, com a mesma mão, antes que ele caia no chão e, finalmente, repita tudo para cada um dos saquinhos restantes. Da simplicidade fez-se um verso puro e o poema maior renasceu entre os dedos de uma criança, criadora e criatura.


Pois foi utilizando-se da mesma singeleza da brincadeira dos cinco saquinhos que o poeta gaúcho Fabrício Carpinejar construiu sua metáfora sobre a vida, a vida de cinco mulheres, todas Marias, mãe e filhas, as mulheres de todos nós e que também nós homens ainda somos, publicando pela Bertrand Brasil, de volta ao ninho, o livro Cinco Marias, sua sexta obra, a segunda pela editora.


Qual o jogo, a história se inicia com o emaranhado de vozes femininas ("Não havia um nome composto / que nos diferenciasse"), que, ao longo do texto, vai se desfiando, uma por uma das peças vai adquirindo contornos cada vez mais específicos, características tão próprias de cada uma delas, tão próprias de todas as do sexo oposto, e, assim, assumindo para si a função de agregar as demais, em certo ponto do livro, o que estava tão bem distinguido volta a apresentar-se como o caos do cotidiano, onde "a linguagem tirava suas vestes", para, enfim, resignar-se diante da impossibilidade da eterna e constante harmonia de um todo tão fragmentado em idiossincrasias mutantes, reinado por um "Deus feminino".


Do Verbo fez-se Poesia que se fez Romance. E qual o Deus do Gênesis, que retirou da costela do homem a matéria para modelar a mulher, não tornando esta inferior a seu par - caso a retirasse de seu calcanhar -, nem superior a ele - fosse o caso do extravio de um naco dos miolos -, mas os fazendo iguais, ambos pilares de sustentação da futura humanidade, sem que o todo permanecesse erguido não fosse a presença de ambos, ruindo a graça na ausência de um, assim também Carpinejar o fez, homem, que de sua costela, seu fígado, pensamento e coração soube fazer-se mulher, usufruindo da sensibilidade que só os detentores da mais cândida beleza possuem.


"Estamos atolados com o que não existe", desabafa Maria. Sim, estamos. Não percebemos mais o que de mais genuíno há no universo e a simplicidade desse ser que denominamos mulher se afigura no que de mais complexo há aos nossos olhos. Somos Dr. Ossian, cuja audácia foi capaz de levá-lo a considerar louco o poeta Avalor em "Biografia de uma Árvore" (2002), ignorantes a ponto de converter sabedoria em estantes mal-arrumadas e empoeiradas pelo tempo, incapazes de apreciar o que diante de nossas fuças se encontra, pagando o mal com o mal e o mal fazendo a quem nem bem tem.


Pois bem, Ossian é morto. E Carpinejar se lançou à frente de seu tempo, partiu rumo ao ano de sua morte aos 73 anos, incorporando Avalor, o bardo sem valor na medida dos homens sem face que encontramos dia após dia nas esquinas e atrás de suas mesas. Expirou-se rindo, talvez da loucura daqueles por considerá-lo louco, talvez por saber que não se passariam nem sete dias para que se desse a reviravolta que sem tramar provocou nos corações dos que o apedrejaram. Sim, talvez Carpinejar esteja, de fato, bem à frente de seus contemporâneos, e com a sapiência de seus 73 anos nos ensina o que talvez seja sua verdade: "Há quem pense que o texto poético se faz derramando sentimentos no papel, inflamando o ego da namorada, chantageando os amigos com loas, descrevendo as belezas do mundo, com aquela pelúcia própria da hibernação dos ursos (e que só dá alergia!), registrando nossos melhores momentos no diário. É justamente o contrário: não é desabafo, poesia revela a realidade sem intermediários e filtros, uma comoção psíquica, nunca servindo para maquiar ou obscurecer o cotidiano, mas para apanhar os detalhes e as distrações que tornam o leitor mais verdadeiro e intenso".


As tantas realidades de marias tantas e tantas outras que o gaúcho nos apresentou em seu livro. A Maria a quem "a fidelidade pode ser cansaço", nada mais. A Maria que suplica: "Dá-me noticias de minha morte, / antecipa-me", na esperança de ainda haver algum carinho a ela reservado, que não póstumo. A Maria enclausurada em sua raiva íntima, para a qual "viver requer a disciplina de ser invisível". A Maria conformada, ainda assim obsequiosa nos resquícios de seu ser a estapear-nos com a máxima de que "não superamos os limites / mudamos as fronteiras de lugar". As Marias mães "que transformam / seu ventre em túmulo / e não empurram a criança / para fora". A Maria que, com todas essas, forma só uma e lamenta: "Lembro do que não vivi / o suficiente para esquecer".


Decerto, nem todos possuem o melindre de Carpinejar, afinal "a semente não escolhe / o lugar da queda". Conseqüentemente, "germina erros". Erros estes que, ao menos por um momento, fazem-nos pensar se realmente há a possibilidade do acerto ou se tudo não passa de uma brincadeira de criança, onde somos todos nós os saquinhos caindo aleatoriamente e no chão permanecendo até que resolvam nos resgatar, fadados aos sádicos caprichos de um mecanismo impossível de se decifrar.


Sim, talvez elas estejam certas. Talvez, a ilusão de um óbvio tantas vezes já erroneamente constatado seja a única forma de nos protegermos da verdadeira obviedade que nos apavora. Talvez, de fato, seja verdade - a nossa verdade e a verdade também delas, que a todos nós protege - que "os homens nunca vão entender"...

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