quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

8/30/2004 08:58:51 AM

Capa do Correio das Artes, suplemento cultural do jornal A União, João Pessoa (Paraíba), 29/8/2004

Entrevista disponível no site Capitu


O FENÔMENO CARPINEJAR

Linaldo Guedes

do Correio das Artes, especial para o Capitu


Fabrício Carpinejar pode ser encarado como um fenômeno nas letras brasileiras. Nascido em 1972, em Caixas do Sul, no Rio Grande do Sul, publica, em 1998, seu primeiro livro de poemas: "As Solas do Sol". De lá pra cá, não parou mais. Sempre lançando livros que conseguem boa aceitação no mercado editorial, inclusive uma antologia intitulada "Caixa de Sapatos". Pode parecer atrevimento de Carpinejar, mas ele diz que ao lançar uma antologia com pouco mais de trinta anos ele queimou uma etapa em sua vida literária. "Foi uma forma de chamar atenção ao jovem: ele não precisa estar perto do fim para pensar sua produção", diz nesta entrevista exclusiva ao Correio das Artes.


Este ano, Carpinejar colocou mais um livro no mercado, "Cinco Marias". A obra parte de uma notícia de jornal para, num estilo narrativo e fluente, deixar o eu-lírico feminino do poeta aflorar com toda força. "Eu deixo as mulheres falarem em mim", explica esse gaúcho, filho de poetas (Carlos Nejar e Maria Carpi), que sabe que seu sucesso precoce provoca ciúmes em alguns poetas contemporâneos e lamenta: "Um problema da literatura brasileira é o hábito de não gostar daquilo que não é espelho. A literatura virou narcisística".


"A literatura virou narcisística"


Cinco Marias, como diz Ana Miranda, é mais do que um jogo de pedrinhas. É poesia e de boa qualidade. Como surgiu a idéia de adaptar uma notícia extraída de um jornal antigo para a sua poesia?

A notícia surgiu como um ato natural do próprio livro. Criei a matéria como uma necessidade ficcional do conjunto. Eu tinha que colocar meu lado jornalista a trabalhar de algum jeito. Finalmente ele serviu para alguma coisa (risos). A notícia representa o jeito como a sociedade observa as personagens, já os poemas significam como as personagens enxergam a sociedade. A sociedade reduz, simplifica, torna fato o que não é decisivo em uma vida. O que é decisivo em uma vida aparece nos detalhes transparentes do cotidiano, na horta desarrumada, no talher torto, no bilhete de trem intacto, na carta que não foi enviada, no amor que não foi usado porque faltou festa para vesti-lo. Foi minha forma de combater os preconceitos, o pré-julgamento, essa mania de querer estragar a vida do outro para melhorar a sua, esse otimismo depressivo.


Há como que uma seqüência implícita entre este livro e os seus anteriores. É intencional esse encadeamento dentro de sua obra?

É intencional. Com Cinco Marias, termino um ciclo romanceado, de matriz bíblica urbana. Em minha obra, encontrará referências ao Jó, ao Novo Testamento, ao Cântico dos Cânticos. A única diferença é que não prego, eu me duvido insanamente. A fé não é sinônimo de calma e segurança, mas de inquietação e desconforto. Quem vive confortável em sua fé está fora dela. Quero encontrar Deus sem precisar Dele. Sou muito ateu para desperdiçar o mundo. Há sempre um personagem Avalor costurando os livros desde As Solas do Sol. Ele briga com o pai em Um terno de pássaros ao sul, encontra-se em sua velhice em Terceira Sede, acerta as contas com Deus em Biografia de uma árvore. Ele não aparece em Cinco Marias, porque apresento a família do Dr. Ossian, médico que atestou a loucura de Avalor. A poesia é um jeito de romancear o que não presta ao romance. Conto uma história para a memória não dormir.


Em Cinco Marias, assim como em outros livros, você se utiliza muito bem de aforismos. A linguagem poética moderna tem que ser necessariamente concisa?

Os versículos me ensinaram a me mover dentro da linguagem. A poesia é inversão, o avesso, buscar conciliar os contrários e desajustar as verdades do senso comum. A linguagem moderna não precisa ser concisa, desde que tenha urgência em dizer. O poema não pode enrolar, deixar para depois, adiar e protelar os relacionamentos. É conversa próxima dos ouvidos, mais sussurro do que voz.


Há um tom muito forte de conclusão na maioria de seus poemas (p ex. "é impossível cortar a semente", "Estamos atolados com o que não existe"). Por que essa "obsessão" por esse tom nos poemas, como estivesse querendo sempre deixar uma lição de vida?

O poema não tem início, somente final. O poema já é uma conclusão, uma síntese luminosa, um pensamento musicado. O início do poema não existe, talvez exista somente no rascunho. Vejo a poesia como um relâmpago, ele avisa da chuva, prepara a sensibilidade para o barulho da luz. Acredito que o poema é uma conversa que ficou trancada na garganta e é arremessada com tanta força que pode transformar uma vida em frações de segundos. É idealismo? Pode ser. Mas não troco meu idealismo pelo cinismo. O medo me ensina a ser puro. Eu amadureci meus medos. Sem o medo, não tenho corpo, não sentiria nada. O medo é a febre do escuro. O medo desprezado, atrofiado e prematuro se transforma em cinismo. O cinismo ataca as pessoas com insinuações. O medo preserva a audição e faz ouvir o que ainda nem aconteceu.


Sua poesia tem um estilo muito narrativo, como se fosse mini-contos. É intencional, no sentido de prender o leitor ao livro, como se estivesse lendo um romance com começo, meio e fim? Ou é casual, fruto da inspiração mesmo?

Acho que é casual. Sou narrativo, mas nunca deixo de ser lírico. Não estou interessado em fazer um épico. Meu interesse é com os desinteresses familiares, o que herdamos sem pensar, o que realizamos sem desejo. O pior de tudo é que podemos passar uma vida inteira fingindo o que não sentimos. Fingir não é mentir. Prefiro as pessoas que mentem, porque elas querem dizer negando. Fingir é concordar com indiferença. Eu não quero ser indiferente com a literatura, quero tomar partido, me doar, me perder no leitor mais do que me encontrar fora dele. Literatura não é alimento, mas fome, é repartir a fome. O desejo tem a inteligência da ignorância - essa intuição do corpo é que me abastece mais do que o conhecimento. Sem a ignorância, não há curiosidade e avidez. A asma de minha infância é a responsável pelo meu estilo. Toda minha escritura é feita de sopros curtos, surtos, como se eu não tivesse tempo a perder na hora que respiro.


Como é escrever sobre mulheres e, mais do que isso, como é incorporar o eu-lírico feminino, coisa que você faz muito bem em várias passagens de Cinco Marias?

Eu deixo as mulheres falarem em mim, eu as assisto e aprendo devagar a ouvir sua alegria. As mulheres são diferentes do homem, mais sábias, porque vivem diferentes idades simultaneamente. Desde pequena, a mulher já é avô, mãe, filha, esposa. O homem vive cada idade separadamente. O pai toma a criança pequena no colo em direção ao mundo. A mãe coloca a criança contra seus ombros, projetada para dentro de si. Cinco Marias é um jogo infantil, onde cada voz segura a outra, completa e se aperfeiçoa. O enterro da biblioteca significa que o conhecimento está guardado e escrito na própria pele. Eu não escrevo para contar a minha vida, pela vaidade de me afirmar, escrevo para sair da biografia e ser os outros. Não suporto ficar todo o dia em meu nome. Preciso passear e observar o que acontece nos demais rostos. Sou um observador periférico, tento imaginar o que as pessoas pensam e desejam. Ao sentar no trem, já transmigro e não volto para jantar. Eu não uso o livro como um espelho para alinhar minhas idéias, mas como um quadro que produz um enfrentamento. Desapareço cada vez mais para que o texto seja visível.


Creio que não seria exagero afirmar que o livro, apesar de todas as ironias presentes nos versos, é uma ode a família. Afinal, "os antepassados nunca estão concluídos" realmente?

Não vejo como uma ode, porém como uma conversa sincera, derradeira e real. Escrevo com quem reclama, não como quem declama (risos).Em todos os meus livros, discuto o núcleo familiar, a sociedade internalizada nas relações entre pai e filho, mãe e filho, casais. A omissão começa na família e depois não tem volta. A culpa começa na família e depois não tem volta. Acabamos querendo que os filhos sejam os herdeiros do que vivemos, que compensem o que não conseguimos, que realizem o que sonhamos. Não perguntamos, em nenhum momento, com absoluta liberdade, o que eles querem. Eles acabam tendo que escolher apenas entre duas opções: ser igual ou diferente dos pais, que na verdade dá no mesmo. Quando se tenta fugir de um modelo, imita-se ainda mais.


Você é filho de uma família de poetas e já deve ter respondido várias vezes sobre de que forma isso influenciou em sua formação literária. Prefiro perguntar sobre como isso possa ter perturbado em sua formação como poeta. Existe rivalidade e disputa, por exemplo, entre pai e filho?

Há uma triste rivalidade com meu pai. Ele é gremista e eu sou colorado. Afora essa, sou muito amigo dele e de minha mãe. Conversamos poesia em casa sem recorrer à teorias ou manuais. Tanto que não treinei minha letra em caderno de caligrafia, não aprisionei a metáfora como figura de linguagem. Ao invés de caçar pássaros com pedras, fui pássaro caçando pedra.


Falar em influências, o que existe de Manoel de Barros, realmente, em sua poesia?

Na boa, Manoel de Barros merece ser comparado com um poeta melhor (risos). Eu não consigo me imitar nem para assinar um cheque. Imagina se conseguiria respeitar ou herdar a teologia do traste do nosso poeta das insignificâncias? Eu concorro comigo. Tento ser melhor do que já fui e isso já me toma bastante tempo.


Você diz, num poema de Cinco Marias, que "fazer as coisas pela metade é minha maneira de terminá-las". Pra você, o que ainda está inacabado, literariamente falando?

Nada está acabado, porque abandonamos antes de terminar. Se permanecemos com um livro sem publicar, ele vai ser alterado até a hora de nossa morte. Não terminamos um amor, abandonamos um amor. Não terminamos um filme, ele acontece no momento que saímos da sala. Não concluímos um livro, ele só inicia depois da última página. Eu sempre digo que a verdadeira amizade a gente nunca sabe como começou. A melhor história é quando não fiscalizamos quantas páginas falta para acabar.


Você tem pouco mais de trinta anos e já colocou uma antologia de sua obra no mercado. Ousadia, atrevimento ou o curso natural de uma produção já vasta, apesar da idade?

Atrevimento, gosto dessa palavra. Eu queimei uma etapa, não preciso me preocupar quando velho de fazer um antologia. Foi uma forma de chamar atenção ao jovem: ele não precisa estar perto do fim para pensar sua produção. Antologia não deve ser exclusividade de maturidade. Pode surgir antes. Eu não quero me repetir. A antologia é higiênica, porque me fez ler bem o que já fiz até aqui. Há muitos poetas que não se lêem e por isso se repetem. Poesia não é uma fórmula, uma senha de transfiguração, é uma experiência visceral e sempre nova com a verdade.


Para José Castello, você é o mais importante poeta da atual geração no Brasil. Como você lida com esse tipo de opinião?

Desde criança, eu queria fugir de meu aniversário. Ter aula no mesmo dia era uma tortura. Eu fico encabulado ao receber presentes, literalmente envergonhado. Não sei reagir bem a elogios, peço a tua compreensão. Eu não sei o que fazer com as mãos, volta a timidez com toda a carga ancestral das dificuldades de dicção e pernas tortas. Não acho que o poeta deve ser enquadrado em melhor ou mais importante. Ele deve apenas ser intensamente seu êxito ou seu fracasso, sem rótulos. Um poeta pode errar em sua época e só acertar em outra.


Aliás, essa sua, digamos, precocidade para o sucesso desperta ciúmes entre os poetas contemporâneos?

Ciúmes é salutar. Inveja é nociva. Recebo muitas cartas e e-mails falando de minha poesia. Alegro-me: todo leitor é um novo idioma. Percebo que a poesia brasileira precisa ter mais humor e autocrítica, que reduziria a formação de tribos e seitas. Não existe fanático com humor. "Quem ri os males espanta", refaço o provérbio. Um problema da literatura brasileira é o hábito de não gostar daquilo que não é espelho. A literatura virou narcisística. Não se lê para entender e respeitar uma outra voz, mas para confirmar a sua. Ou seja, não se está lendo, mas escrevendo sobre o outro. Eu leio para compreender e amar outros estilos, diferentes do meu. Poesia não é religião. O que adianta ter herdeiros se falta paternidade no autor? Somente a estranheza é ecumênica.


Como você vê a poesia produzida hoje no Brasil? Já podemos dizer que temos uma Geração 90?

Identifico um grande momento da poesia brasileira, não sei se posso unificar em geração, mas há inúmeras vozes com fortes individualidades como Astier Basílio, Wilmar Silva, Fabrício Marques, Moacir Amâncio, Micheliny, Alberto Pucheu, Ricardo Silvestrin, Contador Borges, Fábio Weintraub, Régis Bonvicino, Age de Carvalho, Alexei Bueno, Carlito Azevedo, Eucanaã Ferraz, entre dezenas de autores de imaginário consolidado na faixa dos 30 a 45 anos. É tudo questão de confiança, não ficar com receio de errar e de dar nomes.


"Os heróis se calam não eu". Isso pode ser uma máxima a ser aplicada ao poeta Fabrício Carpinejar? A propósito, depois de "Cinco Marias" algum novo projeto em mente?

Pode ser aplicada na veia esverdeada de sol. Eu não vou me calar porque prefiro errar pelo excesso de amor do que pela falta dele. Em casa, fui ensinado a não deixar nada no prato, que é feio. Prometo não deixar nada em minha vida, nada que não seja a minha fome. A próxima obra será o Livro de Visitas, a ser publicado em 2005 pela Bertrand Brasil. Se eu passei até agora transformando a vida dos outros em minha vida, agora vou transformar a minha vida em ficção. Estamos de passagem, portanto, residimos no vôo.

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