quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

8/24/2006 09:53:17 AM

A RESPIRAÇÃO QUE ATRAVESSOU MINHA VIDA

Pintura de Mark Rothko


Fabrício Carpinejar





Sou fanático por chupar laranjas. Não me apetece cortar, descascar, enrolar a casca como um novelo para cobrir o pescoço; gosto de abrir a fruta com a boca, arrebentar os pingentes enquanto descansam e cuspir as sementes de lado. É molecagem. Divido a esfera em duas metades idênticas. Mais do que matar a sede, mais do que embriagar-me com o suco, alegro-me com a acidez da casca. A acidez do solo. O azedo no doce. Não olho os alimentos antes de comer. Afobo-me de mel. Sugo a laranja como se fosse me fingir de árvore. Como se fosse fugir em ave. Como se fosse tarde.


Sou um espremedor de frutas. Um grande espremedor de frutas. Não tenho paciência para contar estrelas. As estrelas igualmente brilham para quem não as conhece.


Chupo a respiração de minha mulher quando ela dorme. Assim como quem chupa laranjas. Ou engole fogo. Sim, não há nada mais delicioso do que se aproximar dela, já em estágio avançado de altura, e permanecer rente ao vento na pedra da boca. O vento morno. O vento quente que poderia ser sinal de chuva se não viesse do corpo feminino. O vento que é a véspera da palavra, com todas as palavras possíveis, com todas as palavras por acontecer, sem uma pronúncia as reduzindo a uma escolha. Minha mulher é tranqüila como um barco. Come o mar com colher. O remo é uma colher, uma faca suavizada.


Quem não brincava que era invisível quando criança? De passar pelas pessoas e acreditar que ninguém poderia enxergar. Ouvir minha mulher dormindo é ser invisível. É ser ela um pouco por dia. É ser o pouso dela, com os vôos baixando os telhados. É ser seu cansaço de céu.


Eu a deixo dormir primeiro e fico acordado colhendo o sopro. Aproximo-me para beijá-la, com os cílios espantados de criança. Não a beijo, deixo sua respiração me beijar, ela faz cócegas na barba. Não conheço música mais veemente do que o som de uma mulher descansando. É o equivalente a escutar o som de um violino dentro do violino. Apanho seu ritmo e me esfrego com a esponja do batimento. Tomo banho a seco em sua respiração. Lavo meu rosto em sua respiração. Lavo as mãos. Lavo a voz. Ela não se mexe, mas pressente que estou pertinho, me fala "eu te amo" para me acalmar. As pálpebras rosadas do escuro. Não me acalma, o amor não me acalma. O amor me faz pensar que estou perdendo alguma coisa dela.


Sua respiração é ostra perolando a manhã seguinte. Chupo sua respiração e não basta. Não me detém, não me adormece. Percebo - com clareza e angústia - que serei sempre uma visita em sua respiração. Um hóspede. Nunca poderei dizer que é minha mulher, porque ela é sempre outra após isso. Por mais possessivo que seja, ela não depende de mim. Não se limita a minha presença. Diferente da laranja, não há casca para avisar do seu fim.


Uma mulher não se explica. Contenta-se em ser uma pergunta. Ela é uma respiração antes da minha.


Minha respiração é tão-somente uma resposta a dela.

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