quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

8/17/2005 07:48:17 AM

TRANSEUNTES

INTERVENÇÕES EM ESPAÇOS PÚBLICOS

Gravura de Henri Michaux


Fabrício Carpinejar


Laura Leiner (música)

Thais Petzhold (dança)


624 - São Borja. Aparelho ortodôntico em até 24x. Embarque. O corpo é um quimono. O frio roça. O frio desliza para a sobriedade do vento. Sem sapatos, Thaís dança. Pula a chama ainda vindo. O inverno é um fogo mais sério e invisível. Laura olha para o olho da guitarra. Cisca os cílios da guitarra. Penteia os cílios da guitarra, o pulmão da guitarra é uma baleia chiando na areia. Quem vai? 632 - Fátima. Os pés dobram sem osso. A unha é um osso fraco. Finca, fica. Não atravesse na faixa. O telhado amarelo poderia ser as costas de um violoncelo. Chuva desafina depois. Thaís é uma manga sem fio, bem doce. 8 passos por 2,00. Laura é um caqui chocolate branco. 15 acordes por 2,00. 656 - Passo das Pipas. O mundo acorda com a bolsa na cintura. Com a bolsa no ventre. Com a bolsa entre o braço esquerdo e o desaforo, entre a esquina e o ônibus que se dobra como uma cobra sinuosa na erva. 615 - Sarandi. Ela se defende, reage, volteia, se insinua entre o que vem e o que não vai chegar. Não cede seus cabelos. Verdura crespa. Atravessa a rua, não atravessa a si. Atravessa o corpo, atravanca a memória com o que não é palavra. O que não é palavra é desejo. Acontece sem ter sido dito. "Sai de mim, para não te perder", grita o taxista. 614 - Leão. Enrola-se no corrimão, enforca-se com uma corda que arrebenta com o peso. Não desaba, o suspiro desaba antes e amortece. Mão ajuizadas de cinza. A cinza acostumou a terra a queimar. 633 - Costa e Silva. Thais voa para descer. O corpo é uma parada errada, uma parada antes da casa e depois do nome. Toda parada errada é a certa. Engane-se mais. O trabalho vai esperar o atraso. A vida é um atraso necessário. Catraca, catarata no olho da guitarra. O motorista e o cobrador são o mesmo uniforme. Nenhum dos dois tem troco para devolver a estrada. Ela se mexe no mesmo lugar, violácea, as veias de sua boca são as que mais dançam. Mexe-se no mesmo lugar, cavalinho de madeira. Cadeira de balanço. Infância acenando na cintura das janelas, passando por baixo da roleta. 703 - Vila Farrapos. Pede passagem: metade do valor. Mortalha seria mais tola. A manta é dividida em duas como fatias de pão. Come o vento, come menina. 652 - Ipiranga Hospital. Embarque. "O que ela faz é dor", diz Joel dos Santos Gomes, que limpa a rua, que limpa o sol da rua. A rua esverdeada do sol, adubo do escuro do escuro do rio. "Essa dor eu já senti, foi quando me separei de minha mulher e os filhos ficaram longe", fala Joel, com a pá atenta. A pá que revolve, não resolve, que desenterra, não esconde. Dor não se leva na sacola. Dor não se lava, infecciona esperança. Dor não anda de ônibus. Passe livre. 703 - Vila Farrapos. Saindo.

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