quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

8/1/2006 10:56:23 AM

SOU QUANDO DEIXO DE SER

Arte de Joseph Cornell


Fabrício Carpinejar





Quando amo, nunca me vejo tão próprio. Sou possível. Sou véspera. Viera para ler minha vida. A praia amarelada é meu rosto pensando. O marulhar não me distrai. Os pássaros escoltam a luz até o alto-mar. Os barcos se soltam como bóias e recolhem promessas de Navegantes. Não há guerra civil. O espelho antigo perdoa as rugas que chegaram depois. As mãos são lábios apertados. O lápis não quebra a ponta ao sugerir quadros.


Mas quando amo não sou eu. Quando amo, me esvazio de mim para ser ela. Eu me anulo para ser ela. Não compreendo como sou mais eu logo quando não sou. Como me sinto pleno quando saí de mim. Como me sinto lúcido ao desarticular o senso. Como me sinto guardado ao me desperdiçar. Ao me sacrificar, acredito que me reencontrei.


Quando amo cedo minhas convicções, meus preconceitos, minhas verdades. Abdico para dar lugar a quem chega com sua escova de dente e seus xampus. Abro espaço no armário, vinco as roupas prediletas. Renuncio a lonjura da cama. Capaz de dormir na esquerda, mudar os hábitos e ler o jornal por segundo. Deixo o jogo passar sem consultar o rádio. Quero agradar mesmo que signifique me desagradar. Eu me bajulo de contradições e censuras. Pergunto o que ela deseja para - se sobrar tempo - me perguntar. Antecipo-me nela para me atrasar em mim.


Ainda que ela me condene, seguirei a absolvendo e reincidindo. Ainda que ela me abandone, seguirei tentando e insistindo. Ainda que me destrate, inventarei motivos para procurá-la. Privo-me da vergonha, da reputação, da moralidade, para esmolar meu corpo de volta. Ou o que julgava corpo antes de encontrá-la. O corpo é a generosidade de perdê-lo. O corpo é o espaço entre ela e eu.


Amar e viver não são simultâneos. Diria até que são excludentes. Ambos exigem muito para coexistirem. Posso ter vivido e não amado, posso ter amado e não vivido.


É impossível sarar de um amor. Escapo-me do que sou, mas não daquilo que preciso e que não encontro sozinho.


O amor mostra que qualquer coisa é modificável, qualquer passado, qualquer temperamento, menos o amor.


No amor, somos tudo, menos a gente.

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