quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

7/3/2004 09:42:29 AM

Jornal Zero Hora, Caderno Cultura, Porto Alegre (RS), 3/7/04:


Literatura


LA DENSER ESTÁ DE VOLTA (porque nunca saiu de si mesma)


FABRÍCIO CARPINEJAR/ Jornalista e poeta, autor de Cinco Marias, Caixa de Sapatos e Biografia de uma Árvore, entre outros livros



Dançar para as paredes, vestir muito preto, com os traços realçados em batom escuro, emendar as noites em bares. Falar o que se deseja, desejar o que se fala. Cenários kitsch, excessivos. Os anos 80 foram isso mais Márcia Denser, que comandou uma nova desordem na literatura brasileira. Conhecida como a musa dark, ela sacudiu a mesmice com os contos de O Tango Fantasma (1977) e Diana Caçadora (1986). Críticos ranzinzas como Paulo Francis se prostraram a sua prosa despudorada: "Márcia Denser se situa entre os raros criadores da linguagem, aqueles que têm algo novo a dizer. Quanto aos outros, resta-lhes a rabeira da história". Uma legião em seguida confessou os pecados da admiração: Rubem Fonseca, Marcos Rey, Ignácio de Loyola Brandão e o conservador Wilson Martins.


Se Marcelo Mirisola provoca polêmica hoje, não se tem idéia de quanto Denser significou em seu tempo. Diante dela, o cubano Pedro Juan Gutiérrez (Trilogia Suja de Havana), cultuado pelo seu hedonismo, não saiu do primeiro grau. Junto do gaúcho Caio Fernando Abreu, Márcia Denser redefiniu a noite, a boemia paulista e o êxtase de correr riscos. Época onde "tudo era válido", com direito a arrepios, desde que abolidos os arrependimentos.


Diana Caçadora e Tango Fantasma estão sendo relançados em um único volume pela Ateliê Editorial, na coleção LêProsa (300 páginas, R$ 35). Não dá para rotulá-la em trincheira feminina e feminista, reduzir seu espaço. Denser derrete o ouro das alianças e dos costumes e os transforma em matéria quente, borbulhante, cotidiana, para ser sorvida em um só gole como sopa Campbell. Tanto que suas protagonistas, em sua maioria, são solteiras, mais velhas, independentes e autônomas.


As tramas aparecem recheadas de festas, despedidas, táxis, motéis, trepadas, desencontros, foras. Suas mulheres ultrapassam o próprio sexo enquanto os homem morrem nele. Examinam o corpo como uma máquina de sentidos, ou melhor, como uma máquina para procurar sentido. Cadelas quando amam e lobas quando odeiam. "Gosto daquilo que posso pegar e pego o que posso". Articulam um olhar escrito, escrevem quando abrem a boca.


A escritura é obsessiva fala, puramente visual, decupada na hora da verdade. Transam com propriedade, sabendo que a "paixão não tem memória". Transam pensando demais. Alcançam com seus homens somente o pensamento múltiplo. Não representam a mulher fatal ou a mulher romanticamente fatalista. Puxam da bolsa referências a filmes e livros para misturar ao martini. Intelectualizam a experiência em ironia erótica. Ao mesmo tempo cômica e sensível, sacrílega e fervorosa, a autora extrapola a imobilidade da angústia com o desejo.


As frases curtas dentro de períodos longos resultam em uma cadência hipnótica, melodiosa e sublime. O que impressiona em seus contos não é o enredo sofisticado ou o impacto do final, mas a habilidade de situar os personagens com duas ou três frases. Em Diana Caçadora, descreve com humor poético um jovem bêbado dormindo: "a cara atônita, amassada de Klaus, parecendo um pedaço carbonizado de casca de árvore na brancura de areia dos lençóis. A boca entreaberta não ousava protestar, articular nenhum som, com aquele ar de bagre estúpido".


Desprovida de indulgência e culpa, suas figuras expressam opiniões com liberdade sarcástica: "Era muito feia e funcionária pública lotada no Rio Grande do Norte e boêmia e o que lhe restava senão ser lésbica? - pensei incomodada com meu próprio preconceito".


Os recursos sensoriais são utilizados para fornecer uma materialidade física. Toca-se o som, a cara de quem se apresenta. É até possível duvidar que a escritora exista, porém é impossível duvidar da carnalidade de seus personagens. Márcia Denser é obscenamente talentosa, voa alto na linguagem e suporta as piores quedas e ressacas. Como Hilda Hilst, suas histórias terminam melhores do que a realidade.


La Denser, como se autoproclama, está de volta porque nunca saiu de si mesma. Não precisa. Mora onde sempre esteve, na melhor ficção (dois de seus textos foram incluídos na antologia Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, de Italo Moriconi). É escritora para se visitar com freqüência. Viver com desmesura é sua única arrogância.


Entrevista: Márcia Denser, escritora


Na entrevista a seguir, concedida ao poeta Fabrício Carpinejar, Márcia Denser comenta as transformações da cena literária do país, dos anos 70 aos 2000. E provoca: "Você nem imagina de quanta inveja é capaz o mundo. Inúmeras são suas formas"


Cultura - Diana Marini, protagonista de Diana Caçadora, é vista como seu alter ego. Até que ponto ela representa sua vida? Não é um reducionismo crítico transformar a autora em personagem?

Márcia Denser- Naturalmente que Diana Marini c'est moi, mas um "eu pleno", um "eu realizado", como este meu pobre "eu", falho e limitado à sua circunstância, não pode almejar. Seria exceder à "justa medida", e ao homem não cabe aspirar o divino. Porque Diana Marini tem essa qualidade inefável do arquétipo, de um "daimon" coletivo, uma divindade ambiguamente andrógina como toda divindade, encarnada numa mulher que se permite tudo, todos os prazeres físicos e intelectuais. Bom, aí sempre falta a emoção, mas já seria pedir muito, posto que as emoções, os sentimentos, as tristezas, dores e alegrias sempre sobraram pra mim, o ser humano de carne e osso, e nesse caso, eu sinto muito. Sem trocadilhos (risos). Explico: os homens observam Diana Marini como o outro lado de um armistício, certo? Mas acontece que uma criatura tão auto-suficiente, poderosa e maravilhosa pode prescindir de todos eles, não é? E como, infelizmente, os homens tendem a identificar Diana comigo, sobrou tudo pra mim, right, baby?


Cultura - Vinte anos separam a estréia das obras de seu relançamento. Houve cortes, depuração, mudanças ao longo desse período? Esse hiato de tempo foi proposital ou não houve interesse editorial? Pagou alto o preço de ser admirada por Paulo Francis, que a caracterizava como "a única escritora que sabe escrever"? Houve muita inveja?

Márcia - Ah, Fabrício, você nem imagina de quanta inveja é capaz o mundo, e inúmeras são suas formas. Bom, vamos por partes. Entre 1990 e 1997, precisamente e segundo pesquisas, a literatura brasileira sofreu um ocultamento terrível, simultânea à ascensão e consolidação do êxito de Paulo Coelho, de cujas obras ninguém fala, por que será? Foi uma espécie de idade das trevas em miniatura, um poço escuro de Coca-Cola, ou seja, havia, pós-90, uma conjuntura totalmente adversa à uma literatura nacional. As razões? A turma aí do Fórum Social conhece todas. Foram 10 anos terríveis. A maré não esteve para peixe para nenhum de nós, donde que enfiamos a viola no saco. De modo que eu, meio livre de Diana Marini e do maldito sortilégio de ser confundida com minha personagem, tive tempo para redescobrir o amor e ser amada, anonimamente, verdadeiramente. Foi um tempo ruim para a escritora e ótimo para a Márcia ser humano. Na retomada de 2000, mui lampeiramente ressurgi, como todo mundo, tanto os pares de minha geração, Loyola, Ivan Ângelo, Deonísio da Silva, Silvio Fiorani, Roniwalter, Vilela, Pellegrini, Scliar, Sonia Coutinho, como a turma de 90, Mirisola, Nelsinho de Oliveira, Bera Ajzenberg, Marcelino Freire, Luiz Ruffato. Quanto ao Francis, ninguém pensou que o que ele apreciava em mim foi também (entre outras coisas mais importantes, claro) algo que se assemelhava ao seu estilo e postura de cronista de seu tempo: a arrogância, a metralhadora giratória, o espezinhar de decálogos. Realmente, somos muito parecidos. E essa auto-suficiência e arrogância nos valeram muitos inimigos, sobretudo nesse momento em que o país anda com a auto-estima baixíssima, e quando tudo se nivela por baixo, banaliza-se ("banalidade" também posa de "falsa modéstia"). Dou um exemplo recente: a apresentação do meu último livro Toda Prosa (Nova Alexandria, 2002) escrita por mim sofreu várias críticas. Engraçado é que quem gostou foram precisamente os escritores de maior talento da geração 90, como Mirisola, Nelsinho de Oliveira e Ruffato.


Cultura - Seu nome volta à evidência encampado pela nova geração de prosadores. Como analisa a literatura brasileira contemporânea? Um trecho de seu livro diz: "Ainda somos muito jovens e essas fumaças literárias talvez se diluam na posteridade". A fumaça continua subindo, desmentindo sua profecia?

Márcia - As gerações de 70 a 2000 têm tudo a ver. Sinto, por exemplo, que o Mirisola, que considero uma espécie de sucessor, retoma - e numa pauta das mais sacrílegas - essa linguagem onde se entremescla a prosa de raiz poética e a prosa antiliterária, que é uma espécie de marca registrada. É dificílimo escrever nesse fio da navalha, entre o sublime e o ridículo. Também lembro a definição genial do Affonso Romano de Santana (genial porque ele a formulou em 1975, cerca de 30 anos atrás): "uma lixeratura que é feita com sucata de cultura".


Cultura - Caio Fernando Abreu foi um de seus grandes amigos e companheiros de geração. Ambos tiveram uma importância central em fixar a atmosfera literária de São Paulo. Como se deu essa convivência?

Márcia - Como escritores: era uma relação de profunda identidade, de profunda cumplicidade, a ponto de um saber o que o outro estava pensando, o que, às vezes, é uma merda... Entre 1987 e 1991, éramos vizinhos, ele, na Haddock Lobo, eu, na Melo Alves, ele, com a crônica no Caderno 2, eu, na Folha da Tarde; em 1988/1989, escrevemos simultaneamente romances, ele, Dulce Veiga, eu, A Ponte das Estrelas, ambos gastamos duas resmas de papel num processo criativo extremamente semelhante; Caio era um escritor mais intuitivo, eu sou mais técnica, assim, como harmonia e contraponto, havia um entendimento sem fronteiras de sexo, nacionalidade ou religião. E pensávamos que o futuro fosse possível, para nós, para o Brasil. Foi? Em que sentido?


Cultura - Minha percepção é de que você assiste a esse espetáculo literário de vaidades, veleidades e suspeitas com uma risada sádica de quem já o viu e conhece o final. Estou errado?

Márcia - Absolutamente certo. Mas exclua o riso sádico e o substitua por um meio sorriso secreto a oscilar entre a ironia e a resignação filosófica: afinal se a experiência é intransmissível, o tempo também não passa em vão. Explico: em meados de 70, a editora Ática lançou no mercado 75 novos escritores. Onde estão hoje, passados 30 anos? Quem ficou do chamado "boom literário dos anos 70"? E como sem tradição, a renovação não faz sentido, fica a pergunta ao leitor.

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