quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

7/31/2004 10:27:39 PM

1972-2004

Para Sônia Haas, minha amiga


Fabrício Carpinejar


Não é o João. Não é dele o osso, a terra do osso, a unha do osso, o cabelo silvestre, a poça do corpo. Não é o João. Ele, quem só vi de uma foto. Ele que não olhava de frente para a lente da máquina, tão distraído com os lados, com o desperdício dos lados, com o que ia sendo deixado de lado. Ele, que é mais o que não sei do que sei, ninguém o conhece inteiro, porque o que não sei é ainda maior do que posso; o amor é todo um esforço de exercitar o invisível. Como serão suas pálpebras abertas, o seu medo de escuro, seus passeios de araucária no mesmo lugar? Esse João não é dele, não é ele. Seu jeito de abraçar igualando os ombros, de rir com os olhos espremidos entre o tempo e o nada, como uma guitarra sendo dedilhada, como um guri que acreditava que iria rir de outro modo. João e seu queixo largo, seus dentes como chaves copiadas. João e sua cor de jarro dormido, vento enrolado, cobertor escuro. João e sua tempestade de uvas. Ele é um outro dentro do casaco, como uma árvore é sempre duas, no caroço e na casca, no pássaro e em sua falta de asas. Não é o João, então é ele, não tem nome como o João, anônimo como o pulmão de João, anônimo como os pés desabotoados de João, ferido de viver a ferida como o João. Não é o João que está na copa da faca, como uma folhagem mais antiga que a transparência, com as ferraduras desafiando a ferrugem, onde os moradores apontavam que teria sido. Teria sido é muito longe. João é o corredor da casa, a ligação entre os quartos. Não se denuncia a morte de João, se denuncia a vida. João, médico João dos filhos que não teve, meu João, não o João que é meu, o João da vida, que morreu vinte e três dias antes da minha vida. Morreu com a minha idade hoje, rodeando o poço com as patas de uma pomba, as migalhas de uma pata. Não é o João, João não deixou restos, não deixou sobras, não deixou nada que não fosse azeite alargando a chama. Como diferenciar a cinza da terra? A chuva da garoa? Me diz, João? João e seus 136 desaparecidos. João e sua criaturas duplicadas, derramadas, florescidas. João mais água do que neblina, quando a sede já era fome. Não é o João, só sei que não é o João. Araguaia, Xambioá, as vogais altas como um céu limpo, um rosto barbeado. João não mudou sua pronúncia, não deixou a eternidade fechar a boca. João foi ver quantos passos o relâmpago estava de sua face. João se criou cristalino, amadureceu sem armário, sem mala, sem voltar atrás. João que se dava como quem se abençoava. João sem o rebanho de papéis, sem carta alguma no bolso. João se levou a sério, levou sua ausência a sério. João não teve enterro, adeus, descaminho. João e a súbita maçã inacabada, mordida. João e o alfabeto em relevo de um retrato. Sua cabeleira como um país perdido. João foi buscar lenha na montanha. Já volta, minto, João nunca disse já volto. Nunca contou os dias, as semanas, as cicatrizes do tambor. Faz trinta e um anos, João, oito anos pensando que havia um corpo te esperando. Mas não é o João, João se escondeu para mais perto de si, não estaria completo abandonando as suas sombras. Não sai do seu esconderijo, ó João. Nem Deus sabe. João fugiu de seu corpo como um rio corta a mata. Um rio não se despede, João, vai serenando em pedras. Nem Deus sabe.

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