quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

7/30/2005 09:14:33 AM

Jornal do Brasil, caderno Idéias, sábado (30/7):


O ENCANTADOR DE SERPENTES

Poesia reunida de Ivan Junqueira é prova do único e indivisível poema


Fabrício Carpinejar

Poeta


Arquivo



Ivan Junqueira: é impressionante constatar como o escritor é fiel à sua estréia, com Os mortos, de 1964




Poesia reunida

Ivan Junqueira

A Girafa

365 páginas

R$ 55


Dificilmente alguém vai rir em um concerto de Johann Sebastian Bach. O tom solene e denso da música gera a concentração do corpo nos ouvidos, em uma seriedade dramática e arrebatadora. A lírica de Ivan Junqueira segue o mesmo diapasão da sensibilidade litúrgica, constatada na Poesia reunida, lançamento cuidadoso da Girafa e que apresenta, entre os inéditos, o belo e longo poema camoniano O rio.


O leitor não encontrará várias fases de um autor, peles recicláveis de um camaleão, mas o autor de um único e indivisível poema, o que é raro e exemplar na volubilidade da poesia brasileira. É impressionante constatar que o escritor é fiel à sua estréia, com Os mortos, de 1964. O conteúdo é seu estilo. Mantém um alto nível de exigência crítica desde então, o que explica suas poucas obras, uma meia dúzia em quarenta anos. Recusa-se a se curar ou se desfazer do primeiro livro, costume da maioria dos escritores. Pelo contrário, tenta propagá-lo em ecos no decorrer das décadas. E ecos cada vez mais fortes e altissonantes, refinando temas até a exaustão metafísica como a morte, a infância, o mistério da encarnação.


Ivan Junqueira não muda, pois amadurece para dentro de sua própria voz. Compreende a literatura como um continuum de Homero até T.S. Eliot, de Cruz e Sousa a Dante Milano. Não rompe o elo entre as produções, porém preserva o cordão umbilical com a nascente oral. Seu vocabulário é clássico, imbuído de arcaísmos e de uma organicidade métrica. Os largos poemas, que se assemelham a meditações monocórdias, provocam uma estranheza mística, um distanciamento reflexivo. Ao não empregar o vocabulário coloquial, concentra os efeitos na profundidade das palavras, na confirmação de um sentido de conjunto. Parece um poeta à moda antiga por se tratar de um poeta antigamente novo. Absorve a herança simbolista da valorização da música para uma investigação filosófica moderna. Sua imaginação atende os princípios da fábula, da recriação de todo andar, inclusive o mais prosaico, no formato de dança. No plano do maravilhoso, é capaz de enxergar ''duendes frágeis'' nos dedos de um menino desenhando com lápis de cor.


Como o flautista perante a serpente, Junqueira exerce um cerco às imagens por todos os lados. Um emparedamento dialético, em afirmações cada vez mais detalhadas, ziguezagueando no claro e escuro da existência. Um exemplo é Meu pai, doloroso reencontro com o pai morto: ''Eu vi meu pai nas franjas da neblina/ Eram tão frias suas mãos defuntas,/ Eram terríveis suas órbitas vazias./ Eu vi meu pai, a voz quase inaudível,/ chamando-me ao seu colo desvalido/ e a fronte me cingindo com um nimbo/ de flores e de ramos já sem viço./ Eu vi meu pai. E ele sorria./ Os lábios se entreabriam como lírios/ de alguma extinta e lívida ravina./ Seus pés imensos a distância percorriam./ E o que entre nós fora conflito e abismo/ agora se fundia em íntimo convívio./ Eu vi meu pai. Vi-lhe a loucura, as tíbias/ finas, o pigarro, o edema, a hipocondria./ E os cavalos, o baralho, o vinho./ Era ele, sim, não quem eu vira um dia/ inútil e seráfico no esquife,/ enfeitado de flâmulas e espinhos./ Eu vi meu pai. Era um prodígio/ que encantava madonas e meninos, /e numa esfera aprisionara um grifo./ Eu vi meu pai. Era um dândi e um mendigo./ Foi-se embora à tardinha. O céu/ se desfazia em púrpura e agonia./ Já se foi. Agora é lágrima e vertigem''.


Enquanto o poeta toca sua flauta, o poema - tal a naja - ergue-se do subterrâneo do cesto e dilata o capelo, deixando-o na posição normal de defesa. Os movimentos que o encantador de serpentes exerce são acompanhados pela cobra, enquanto ela fixa os olhos nele, sempre engatilhada para atacar. Nesse poema do autor, a cena começa escura, difusa e embaçada, com o pai na neblina. O ritmo cresce espiralado, com detalhes do corpo do pai a surgir precisos e imponentes, permitindo o reconhecimento filial. A naja dilata o capelo no momento decisivo em que o poeta diz com nitidez e assombro: ''Eu vi meu pai. E ele sorria''.


Daí por diante o duelo é imprevisível, de ordem psicológica, com oscilação dos impulsos da submissão à surpresa, e o pai deixa de ser exposto pelas suas características físicas para ser descrito pelas manias, desejos e escolhas emocionais. Assume uma condição híbrida de fantasma e carne, de realeza e falência (''um dândi e um mendigo'').


Assim como o embate entre o toureiro e o touro significava o extremo da arte para João Cabral, a naja dos versos de Ivan Junqueira não sofre a extração das presas, e ele se arrisca a duelar com o medo da infância e enfrentar a possibilidade de ser mortalmente atingido. Esse risco total que permeia a poesia funciona como uma hipnose, um enfrentamento legítimo entre o que se pode dizer e o que se pode cantar. Junqueira tem a consciência de que nem tudo o que pode ser dito pode ser cantado poeticamente e se esforça para tomar de assalto o inaudito e os caminhos do silêncio.


Ivan Junqueira é um encantador de serpentes, na acepção da Índia antiga em que o encantador também atuava como narrador popular de idéias. Infunde intimidade sacra em situações profanas e vice-versa, não fugindo de expor as ''vísceras do pátio'' e as experiências cruciais da sua vivência.


Persegue a morte como um recomeço, pois não a percebe como uma zona de desaparecimento e extinção. Conclui que os mortos duram nos vivos, não são os vivos que duram na morte. Compreende a morte como um universo invisível e paralelo desde o nascimento. Quando os familiares falecem, não se termina a conversa, é quando ela se inicia.

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