quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

7/23/2005 10:12:59 AM

JORNAL O GLOBO, CADERNO PROSA & VERSO

Rio de Janeiro, 23 de julho de 2005





CENAS DE UM CASAMENTO POÉTICO

Como no céu & Livro de visitas, de Fabrício Carpinejar. Editora Bertrand Brasil, 224 páginas. R$ 29


Cíntia Moscovich




Fotografia de Renata Stoduto



Ele já foi de tudo: já foi sol, já foi sede, já foi seu próprio ancestral, já foi filho que chama de volta o pai ao pampa, já foi árvore, já foi mãe que deu à luz quatro irmãs. Agora, com o lançamento de 'Como no céu" e "Livro de visitas", duas obras integradas em um único volume, Fabrício Carpinejar se converte em substância de amor que atravessa o céu e o inferno do casamento - e, juntando os pedaços de sua própria existência, nunca conseguiu ser assim tão inteiro.


Aos 32 anos, nascido na cidade gaúcha de Caxias do Sul, morando na também gaúcha São Leopoldo, Carpinejar é um dos poetas mais vigorosos e aclamados da cena nacional. Batendo na marca de sete livros lançados - ou oito, se for considerada a unidade intrínseca de cada um dos novos volumes -, o autor investe no lirismo e na invenção formal. "Como no céu" e "Livro de visitas" têm início, cada qual, em uma face do volume, arranjo que faz com que se leia um dos livros de trás para a frente: o final de ambos se encontra para recomeçar uma sucessão infinita.


Composições que desacomodam o leitor


Praticando uma escrita de extração narrativa, com direito a personagens, enredo e ações encadeadas, característica que o aproxima da essência metafórica e imagética da própria poesia, Carpinejar explora o casamento por dois pontos de vista: um luminoso e harmônico (em "Como no céu") e outro mais sombrio e meditativo (em "Livro de visitas"). Vocacionado para colher instantâneos e para as composições que desacomodam o leitor, o poeta dispõe-se a escavar a palavra com a intenção de, lá no mais fundo do miolo, extrair a gema da significação. Dito de outro modo: ele espreme o significante para deformar seu significado - ou algo parecido.


Talvez isso, a prestidigitação semântica, essas torções de imagens que desembocam na estranheza, seja a maior marca carpinejariana - e, de quebra, o que tem colocado parte da crítica de cabelos em pé. Um bom exemplo do jeito do poeta está em "Como no céu", na cena de um casal tomando café da manhã. O flagrante doméstico é interrompido: "O relógio na cozinha/ pupila de faca". Aproximação torta e estranha, mas dá no que pensar.


Ao mesmo tempo em que continua raspando seus textos na busca da exatidão, do essencial e necessário, exercício ao qual se dedicara no livro anterior, "Cinco Marias", de 2004, e que contraria o caudaloso "As solas do sol", com que estreou em 1998, o autor se esquiva do aforismo, daquelas sentenças judiciosas e cheias de poses conclusivas ¿ mesmo que pratique o verso curto, namorando com a construção breve do epigrama. O que ele quer mesmo é contornar a miséria de sentido das coisas sem incorrer (muito) na metafísica: "Meus deveres minerais./ Meu amor mineral./ E o batimento ali,/ pontual, despreocupado,/ pardal de água na pedra".


Ao lançar as bases de um universo singular, o poeta não teme valer-se da própria história de vida. Sem cerimônia, ele abre a porta da casa a seu leitor: ali estão a asma, os filhos descontados em folha de pagamento depois da separação, o menino feio sujeito às maldades dos colegas, a criança que custou a ser alfabetizada e que trocava as letras, o corpo da mulher nua em pêlo. Talvez isso, a intimidade escancarada, o tom confessional, que não é exclusivista, a dicção biográfica, que não se torna auto-retrato, faça de "Como no céu"/"Livro de visitas" volume que contém um lirismo quase desavergonhado, indecente mesmo: "Ela senta ainda com o sêmen/ entre as pernas, a invasão/ indefinida, pressionando o fluxo/ a lavar a promessa de filhos". E, enquanto isso, o poeta recolhe as roupas espalhadas pelo chão. O amor tinha pressa.


CINTIA MOSCOVICH é escritora, jornalista e autora de "Arquitetura do arco-íris", entre outros livros

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