quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

7/22/2005 11:48:47 AM

O FOGO É UM VASO INSATISFEITO

Pintura de Chagall


Fabrício Carpinejar





A rua da minha infância não tem asfalto. As cordas vocais, intactas. Impressão de subir em telhado, andar inclinado como uma vela. Desnível de férias e de feira de verduras. A rua da minha infância é tarada. As mulheres cuidam para não perder o salto. Mania de segurar as pernas das mulheres e não soltar. De beijar as pernas das mulheres e bafejar o vestido delas para cima. Quisera ser uma rua espiando as pessoas por baixo. Portar óculos dos porões, colecionando sapatos e cadarços.


De pequeno, o que mais me acalmava era ficar na altura do solo, com o ouvido colado para escutar meu ouvido. Rilhar o carrinho na pedra, na areia, e fazer barulhos similares com a boca. Barulhos incompreensíveis, a imitar bichos que não foram inventados. Ou que foram extintos antes de nascer. Depois me senti perseguido pelo Velho do Saco, fui me acostumando a crescer. Como o velho não seqüestrava adultos, enganei a idade até chegar a ela. Amadureci por medo, jeito mais rápido de envelhecer.



Cavava a terra certo de que a luz surgia de dentro dela. Não do céu, de fora, mas de dentro. O abismo é preguiçoso, não se cava mais. O abismo não merece sua profundidade. Profundidade depende do esforço das mãos. As minhocas foram os meus peixes. Pescava o lodo da horta. Com o caniço das unhas. O remorso de cortar a minhoca involuntariamente. De fatiá-la ao meio e não diferenciar o grão do movimento. A minhoca sofre muita coceira. Vive se enroscando, procurando as costas em seu bolso.


Sou homem de inverno, dos casacos na cadeira, do fogo lambendo o osso. A geada fez uma cópia de chave em meu rosto. Se a eternidade for um verão interminável, precisarei alugar um chalé no purgatório. Meu escuro é selvagem, não domino o que não vejo. Eu me canso quando fico triste. Meus vizinhos gostavam de cachorro, gato, hamster. Eu desejava cuidar de um cavalo caolho. Um cavalo que resumiaa estrada em um só córnea. Um cavalo só com um lado da moeda. Meu pai disse que a casa não permitia cavalo. Falei que sim, argumentei que sim, um pátio onde dormia um abacateiro permitia cavalo. Ainda mais um cavalo caolho, que não olhava de frente.


Sou um pacote amarrado por cordas. O avô fazia cordas em suas remessas pelo correio. Quem é antigo ainda usa as três voltas no envelope. Suspensórios das cartas. Admirava a correspondência dele, mas temia seu violino. O violino como uma faca perto da garganta. Muita coragem para tocar com a lâmina pressionando a pele. Todo violinista é ameaçado de morte pela música. Mexe o arco para se defender.


Não me convidei para viver, é estranho ter permanecido tanto tempo em mim.

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