quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

7/17/2005 08:44:33 AM

Estado de São Paulo, Caderno Cultura, 17/07/05, página 06


Idéias


OS DESCAMINHOS DA MEMÓRIA

Morto em maio, Antônio Carlos Villaça combinava lucidez do ensaio com densidade da biografia



FABRÍCIO CARPINEJAR

Especial para o Estado






VILLAÇA - 'Ternura umedecida, olhar longo como seu rosto, à procura do absoluto, de Deus ou, ao menos, do vazio de Deus'



Nada é mais ingrato a um memorialista do que ser esquecido. Nada mais triste do que não receber em troca o que foi dado com suor e sangue. Logo ele que fez da memória dos outros a sua única ficção. Logo ele que retratou seu tempo com uma fome insaciável e se desperdiçou para economizar seus pares. Premiado com o Machado de Assis (2003), da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra, autor de mais de vinte livros como O Nariz do Morto, O Anel, O Monsenhor e Degustação, o carioca Antonio Carlos Villaça faleceu sem alarde, no final de maio. Morreu em silêncio, anônimo como sua cama, anônimo como seu abajur, atendendo o dever da carne, depois de dedicar mais de meio século à literatura, desde sua estréia com a biografia do Barão de Rio Branco.


Villaça tinha uma ternura umedecida, olhar longo como seu rosto, à procura do absoluto, de Deus ou, ao menos, do vazio de Deus. Admirado pelos poetas Cassiano Ricardo e Carlos Drummond de Andrade, foi durante décadas uma referência obrigatória na literatura brasileira. Um místico que narrou suas perplexidades e inquietações sem o pudor de esgotá-las. Era de uma geração que lia francês como uma segunda língua, que aproximou a poesia da filosofia e da teologia, que viveu sob a influência da visão cristã de Teilhard de Chardin, Jacques Maritain, Charles Pegúy, Julien Green e Paul Claudel, que conversava como quem escrevia. Não temeu a vocação de arder as contradições do homem. Não sofreu as duas desgraças para um escritor: 'não saber a língua por dentro e não saber que não tem assunto' ( O Anel). Constituiu-se uma espécie de oráculo a revolver o fundo das coisas, acompanhado tão-somente da fidelidade de suas lembranças.


FOI DURANTE DÉCADAS REFERÊNCIA OBRIGATÓRIA PARA OS AUTORES BRASILEIROS


Em O Nariz do Morto (1970), sua obra mais conhecida, descreve sua tentativa de ser um monge beneditino e explica sua desistência em nome da solidão literária. 'Eu suponha que seria feliz no futuro. Não suponho, sei que supunha. Mas não era feliz. Sempre fui uma criança atormentada por não sei quê. Ernesto, esse dizia que eu era: desensofrido'.


Para usar seu pensamento, não fazia ordinariamente o extraordinário, mas extraordinariamente o ordinário. Tudo o que via, ouvia e sentia virava evocação imaginária, emanação elegante e imprescindível de um texto claro e ritmado, de frases curtas, simétricas, como pedras de um rosário. Suas vírgulas não sobravam, pontuais com a respiração. Sem o rigor da cronologia, preocupava-se com a duração espiritual do que estava sendo dito. Utilizava virtuosamente o fluxo de consciência, aberto a revelações e improvisos do inconsciente. Preservava o mistério de não compreender totalmente o que compunha. Como se fosse um mensageiro de seu talento, que escreve para se ler, que anota primeiro para se interpretar depois. 'Creio nas forças obscuras da irracionalidade. Creio na extrema lucidez do irracional. (...) Terei eu medo de alguma palavra? Terei eu medo de alguma realidade? Não serei capaz de exprimir todas as realidades? Ou serei capaz apenas de exprimir certas realidades no escuro? Que significam para mim ódio e amor? A grande arte não admite pressa. Mas a grande arte exige amor e ódio.' (O Nariz do Morto)


Recriava sua vida como forma de viver a disciplina. Em si, dialogavam a pobreza e a misericórdia, a compaixão e a sinceridade. Não produziu livros, produziu experiências. Bastava-se como testemunha, em reconhecer a grandeza de seus contemporâneos como Alceu Amoroso Lima, Gilberto Amado, Augusto Frederico Schmidt, Gilberto Freyre e Manuel Bandeira, que viraram personagens de seu inesgotável diário, de sua intermitente Comédia Humana. Nunca pediu grandeza emprestada. Representava genuinamente um memorialista atormentado em ampliar a noção da vivência. Misturava ensaio com biografia, seguindo o filão aberto por Joaquim Nabuco, em Minha Formação, encorpado por Graciliano Ramos em Memórias do Cárcere e que encontrou seu intérprete perfeito em Pedro Nava. Mas a memória não foi vaidade. Não se elogiava em nenhum momento de seus livros, muito menos se arrogava o direito de ser mais história do que seus convidados. Era súdito ao texto, como um celibatário que não contraria sua fé. A literatura foi sua religião e o salvou da mortalidade.


* Fabrício Carpinejar é poeta e jornalista, autor de Como no Céu/Livro de Visitas (Bertrand Brasil, 2005)

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