quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

7/15/2006 11:34:56 AM

ONDE É O FUNDO?

Pintura de Joseph Cornell

Para Hamilton


Fabrício Carpinejar





Uma menina se distraiu ouvindo música numa grande livraria, sentiu falta da mãe e, de pronto, largou os fones e partiu para recuperar sua companhia. Pediu informações para uma moça, que tinha atendido a dupla naquela tarde. Com tranqüilidade, a funcionária mexeu com a mão esquerda nos cabelos encaracolados da criança enquanto apontava o caminho com a direita: "Sua mãe está no fundo da loja!".


Ao invés de se acalmar, a menina saiu correndo entre as estantes, desesperada: "onde é o fundo? onde é o fundo? onde é o fundo?".


O apelo me machucou porque percebi claramente que as mulheres perguntam desde o princípio onde é o fundo. Elas iniciam um relacionamento já questionando onde é o fundo. Não desejam o raso, não desejam passar o tempo, não desejam namoros temporários e esquecíveis. Por mais que o discurso seja o da liberação e do desprendimento, as mulheres, em sua maioria, procuram e temem o fundo. Nasceram e se fortalecem do fundo.


Quando testemunhei a criança gritando, entendi tudo o que experimentei e julguei como bobagem, tudo o que ouvi e não fui atrás, tudo o que perdi e não me flagrei atrasado, tudo o que não entenderei sobre as mulheres. O fundo. Simplesmente o fundo, que uma menina de quatro anos involuntariamente já buscava. O fundo que perguntou minha avó. O fundo que perguntou minha mãe. O fundo que perguntou minhas ex-namoradas. O fundo que perguntou minha esposa. O fundo que perguntou minha filha. O fundo que perguntará minhas netas. O fundo ancestral a perturbar minhas amigas. O fundo inalterado, que mais é ao não ser alcançado, que mais se percorre ao se duvidar dele.


Na hora em que minha mulher brigava, ela me sugeria apenas, com outras palavras, se estava disposto a ir ao fundo. E não respondi, para permanecer no colo da espuma e não perder de vista a íris borbulhante do anzol, para não alterar a superfície e não me comprometer. O homem é capaz de doer, sim, mas não de doer investigando o fundo. O homem dói iletrado, o homem dói sem se misturar à dor. Uma mulher dói com coragem, questionando se vai doer ainda mais. Dói olhando a ferida, com a consciência da ferida.


O homem persegue uma paixão que o modifique, uma mulher persegue uma paixão que a reafirme, que a empurre para o longe, o longe de sua própria boca. O homem pretende se abandonar, a mulher quer se recuperar.


Ela pode estar parada, acomodada, estável, satisfeita, morta num relacionamento, mas o fundo estará se movendo por dentro, imperceptível, desenhando conspirações.


O fundo não é o limite. Uma mulher pergunta onde é o fundo para continuar indo, não para deixar de ir. Como uma menina que só caminha se descobrir antes quantas quadras faltam para chegar. Ela irá perguntar ao seu homem se realmente a ama, muitas mais vezes do que o necessário. Não é para irritar; é para encontrar um amor que nunca a faça se satisfazer com seu fundo.

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