quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/6/2005 09:09:37 AM

NÃO HÁ DE QUÊ

Gravura de Monet

A partir de conversa na Serra, com Luiz Paulo e Cíntia


Fabrício Carpinejar





Eu fico tonto com as folhas amarelas dos plátanos, as estradas pontilhadas de um amarelo que me dá paz sem me sossegar. Uma paz que não é conforto, que não é ajuste. Uma paz que é entusiasmo, agitação, inquietação. Vontade de amar o que a terra não mostra. Vontade de riscar o chão e soltar aquelas folhas todas por cima do corpo, como um desmaio vegetal. Não, nada do que aconteceu foi tão alegre. Não é isso. Não fui tão alegre quando criança, não fui tão alegre quando adolescente, não fui tão alegre quando adulto. Mas, ao me lembrar, me torno naturalmente eufórico. Recordar já é uma alegria. Mesmo que seja um desmemoriado, será uma alegria. Andar no ouro movediço das folhas é recuar à casa da avó, ao tanque de figos, ao piso de tábua e ao quarto colado à rua, onde se escutava com nitidez cada travessia noturna, com as sombras escoando pelas venezianas. Só é triste quem não se recorda, quem não mistura os fatos com as impressões. Toque-me no pescoço, o braço ficará arrepiado e será um acontecimento. Toque-me na memória e vou me encontrar mais do que me pertenci. Nenhuma separação é maior do que a possibilidade de restauração da memória. Não existe escombro que não possa servir de pedra novamente. A memória devolve o que não tínhamos. A memória é a saudade do que virá. Não há quem não feche os olhos ao comer, não há quem não feche os olhos ao cantar a música favorita, não há quem não feche os olhos ao beijar, não há quem não feche os olhos ao abraçar. Fechamos os olhos para garantir a memória da memória. É ali que a vida entra e perdura, naquela escuridão mínima, no avesso das pálpebras. Concentramo-nos para segurar a dispersão, para segurar a barca ao calor do remo. O rosto é uma estrutura perfeita do silêncio. Os cílios se mexem como pedais da memória. Experimenta-se uma vez mais aquilo que não era possível. Viver é boiar, recordar é nadar. Escrevo na água, no vento da água. O passado sem os olhos fechados é como uma roupa enrugada. Sem corpo. Sem as folhas dos plátanos.

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