quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/27/2005 02:03:01 PM

FOLHA DE SÃO PAULO, ILUSTRADA

São Paulo, segunda-feira, 27 de junho de 2005



LITERATURA


DA PASSARELA DAS BIBLIOTECAS, ESCRITORES ELEGEM MISS

Chico Buarque é vencedor do 2º Concurso Miss Cultura para trechos literários; Adélia Prado leva Miss Simpatia


JULIÁN FUKS

ENVIADO ESPECIAL A PORTO ALEGRE


Foto de Rodrigo Rocha




Palavras bem torneadas, rimas rijas, estilo no caminhar das frases. Respiração autoral equilibrada, espinha dorsal ereta, olhar alto e preciso, abrangente. O balançar de um lado a outro das sílabas, como cachos de uma cabeleira, no molejo do salto alto a passear pela passarela das páginas. Vinte centímetros de prosa, 30 de verso. Cacofonias e deslizes verbais são desclassificatórios.


"A beleza do texto é fundamental", dizem os escritores Fabrício Carpinejar e Marcelo Carneiro da Cunha, organizadores do 2º Concurso Miss Cultura para trechos literários. Um concurso de beleza em que as beldades são os livros.


Os dois idealizaram o concurso como forma de fazer um sarau diferente. A cada mês, junta-se a dupla um convidado especial. Com a convidada desta edição, Cíntia Moscovitch, também escritora gaúcha, eles apresentam em leitura cada uma de suas cinco candidatas postulantes ao título supremo e universal, escolhidas após 30 dias de processos seletivos prévios, na biblioteca mental de cada um dos três. O público, cerca de 40 pessoas em uma livraria de Porto Alegre, ouve atento aos textos e vota para definir a cada mês a mais nova Miss Cultura.


Como tema desta edição, o fantasma abominado pelas belezas tradicionais: comida e dieta. Os candidatos, com perdão do ofensivo trocadilho, são autores de peso. O primeiro a desfilar é Fernando Pessoa, com o poema "Dobrada à Moda do Porto", lido por Moscovich. Em seguida, João Guimarães Rosa, montado num lindo "O Cavalo que Bebia Cerveja", também entra na passarela.


Mais tarde, o americano Philip Roth desfila com seu "O Complexo de Portnoy" e o argentino Juan José Saer expõe as delícias de um churrasco canibal em "O Enteado". Todos são, braços cruzados às costas e olhos ansiosos esperando o resultado, lado a lado derrotados.


O vencedor, Miss Cultura de Junho de 2005, desponta na passarela sob rumores e polêmica. "Com vocês, meu terceiro candidato", anuncia Cunha e nada lê. Do alto, o som na caixa, e a música "Feijoada Completa", de Chico Buarque. Carpinejar não se contenta, quer a desclassificação imediata do candidato: "Não é literatura". Moscovitch pondera, é, não é, é, não é. O público vota e decide: Chico Buarque não é desclassificado e mais tarde será novamente votado pela maioria, para abocanhar o título de beldade-mor.


O segundo lugar, Princesa da Noite, é disputado em segundo turno pela zebra José Candido de Carvalho, com "Bifes à Milanesa com Farinha de Caco de Vidro", e Adélia Prado, com seu adequado "Casamento". Cunha faz a defesa de seu candidato: "Os textos de Carvalho são as coisas mais humorísticas que eu conheço na literatura brasileira." Carpinejar se indigna novamente: "Mas que discurseira é essa aí? Agora vai fazer tese?" Prado pertence a Moscovitch e acaba ficando com o terceiro lugar. Não deixa de ser boa ironia: Adélia Prado é eleita Miss Simpatia. Resta saber o que pensaria a própria autora disso.


Hora das justificativas


A teoria por trás da divertida prática do concurso vai além de parodiar o mundo fashion. "Estamos afirmando a necessidade de beleza no texto literário, o que significa reflexão, contemplação e construção de frases belas", diz Carpinejar, tão seriamente como esperariam os leitores de seu livro de poemas "Como no Céu", recém-lançado pela Bertrand Brasil.


Cunha, autor de novelas infanto-juvenis e do romance para adultos "Nosso Juiz" (Record), completa: "É grego o negócio: a arte é o que é belo aos olhos e aos ouvidos". Aproveita ainda para justificar a pertinência do evento: "O sarau é uma forma de socializar a experiência da literatura, que é quase sempre solitária e linear. Agora recuperamos essa tradição antiga de ler textos em público, mas de um modo menos formal do que no passado".


Promover a votação do melhor texto e também a competição e rixa fictícia entre aqueles que os selecionam previamente são ingredientes fundamentais à receita do evento. "A proposta é que tanto nós quanto o público encarnemos o texto, que o tomemos com o mesmo zelo e religiosidade como se fosse nosso", diz Carpinejar, cujas leituras dramáticas entusiasmadas irritavam Cunha. "Nada de leituras histriônicas", ele estabelecera no início. Carpinejar se recusou a obedecer a ordem, seguindo, talvez, a idéia central de tudo o que se fez ali.


SARAUS VOLTAM A REUNIR LITERATOS

DO ENVIADO A PORTO ALEGRE


Se o Concurso de Miss Cultura para trechos literários é algo provavelmente sem precedentes na literatura brasileira, os saraus -tradição antiga no cenário da literatura mundial e nacional- parecem estar ganhando cada vez mais força nas cidades brasileiras.


"A história da literatura está repleta deles, e agora estamos voltando à prática", diz Marcelo Carneiro da Cunha, lembrando que boa parte dos textos antigos começa com expressões como "Esta história que você vai ouvir..."


Porto Alegre é também centro dessa atividade, contando com aquele que talvez seja o maior do país, o Sarau Elétrico, criado pela jornalista Katia Suman. Promovido há cerca de cinco anos no Bar Ocidente, toda terça-feira, já chegou a reunir mais de 300 espectadores.


São Paulo não fica atrás. O Sarau do Charles, que vai completar dez anos, localizado num galpão aos fundos da casa 921 da rua Harmonia (Vila Madalena), tem a sua própria maneira de descontrair. Intercalada à leitura de poemas, há apresentações musicais, circenses e teatrais. O próximo se realizará no dia 16 de julho, das 23h às 5h.


Não tão distante dali, a pequena Livraria da Esquina (rua Caetés, 489, Perdizes) recebe escritores, no fim da tarde, em sarau organizado pelo contista Claudinei Vieira. Já passaram por lá autores como Ivana Arruda Leite, Indigo e Tony Monti. O próximo ocorre no dia 30 de julho.

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