quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/26/2005 03:19:23 PM

JORNAL DO COMMERCIO, CADERNO C

Recife (PE), Domingo, 26/6/05



ENTREVISTA /FABRÍCIO CARPINEJAR


POESIA É DEFEITO DE COMUNICAÇÃO

Por Diana Moura


Fotografia de Renata Stoduto




"A gente não deve se desculpar pelo que viveu, só precisa se desculpar por não ter vivido." Foi com essa frase que o poeta gaúcho Fabrício Carpinejar concluiu uma entrevista pontilhada por poesia e reflexão sobre a vida. O ponto de partida da conversa, realizada pelo telefone, foi o lançamento do livro "Como no céu/ Livro de visitas", um volume com dois livros (e duas capas) que discorrem sobre o lado solar e a face sombria do amor. Não qualquer amor, mas um amor que convive, reside sob o mesmo teto e tem lado certo na cama para dormir à noite. Além de escritor, Carpinejar trabalha como jornalista (sua "identidade secreta") de um site de informação, apresenta um programa sobre literatura no Canal Futura do Rio Grande do Sul e mantém dois programas de leitura na Livraria Cultura de Porto Alegre. Dono de uma poesia delicada, em "Como no céu/ Livro de visitas" o autor desenrola novelos de sentimentos até atingir o nervo das questões que aborda, do amor diário. Mas nunca concede ao tema o tom de uma navalha. Mesmo quando está empenhado em evidenciar (retirando-as) as camadas de insegurança e estranhamento que são o reverso da cumplicidade e do carinho, ele o faz com ternura: "Não conto os meus pesadelos ao acordar./ Não termino mais uma frase inteira./ O começo de uma conversa é difícil/ Depois mais difícil se torna/ Quando ela aconteceu/ Sem começar".


Jornal do Commercio - Por que lançar dois livros em um só volume?

FABRÍCIO CARPINEJAR - Eu quis enfrentar a poesia catártica amorosa, aquela poesia que é desabafo, que é loa, que é elogio, encenação. Então, a minha idéia é mostrar o relacionamento como ele realmente é. Contraditório. Sempre tem um lado escuro (Livro de visitas) e um lado solar (Como no céu) que se enfrentam e se completam.


JC - Mas, nos livros, o lado escuro também tem momentos doces. E o lado solar, às vezes, inclui as adversidades.

FC - Eu acredito que eu não poderia ser purista, extremista, a ponto de um lado não se interpenetrar no outro. Eles conversam entre si. Eu acho que no Livro de visitas há mais o peso do cinismo, do isolamento. "Ela não é capaz de me entender. Ele não é capaz de me entender." Na medida que você fala isso no relacionamento, você está decretando o fim. Enquanto no Como no céu, há a afirmação da compreensão. "Ele me entende. Ou, ainda que seja difícil, ela me entende." E mesmo quando há uma falta de compreensão, há um encantamento por essa falta de compreensão. É isso que eu busco. Em Como no céu, há a graça, a leveza, a comoção pelas imperfeições. É um humor diferente do Livro de visitas, que tem o cinismo, a ironia. Porque, num casal, aquilo que é imperfeito no início, deixar os frascos abertos no banheiro, a toalha molhada na cama, depois se torna uma marca de cada um, uma virtude, e você começa a sentir falta do próprio defeito do outro. Porque são os sinais da convivência.


JC - Então, quando se sente falta do outro, também se sente falta do que no começo era imperfeito e se queria corrigir?

FC - Aquilo que a gente tenta corrigir, com o tempo, na verdade nos corrige. Como no céu, por exemplo, tem uma cena em que a mulher que não gosta de tomar café, não gosta de passar o café, na ausência do marido, ela o faz, porque o cheiro do café diminui a solidão. O livro expressa esses detalhes, essas distrações, que a gente não acompanha pela pressa, pela maneira de concluir. A gente fica muito mais preocupado com o futuro do relacionamento do que com o passado. A gente trata o amor como uma relação cambial.


JC - Mas os seus dois livros tentam se desvencilhar disso, e tratar outras faces da relação, não é?

FC - Sim, acho que tem pelo menos o ímpeto da superação. Porque, por exemplo, um homem concluir: "Tolerava teus amantes como reencarnações atrasadas", isso é um avanço. É bonito. Porque a gente sempre quer ter a posse da pessoa. E essa posse significa apagar tudo o que ela fez. Ou seja, ela não pode falar de algum outro relacionamento, que a pessoa já sente ciúme, inveja. Eu acho isso errado. A gente não casa com uma pessoa, a gente casa também com a memória dessa pessoa. Se não, ela nunca estaria ali com você. O costume é querer zerar os relacionamentos na medida que se começa um novo. Isso é uma mentira.


JC - Numa entrevista, o escritor Ariano Suassuna disse acreditar que por trás de todo impulso de criação literária, estão a música e a poesia. Você concorda com essa afirmação?

FC - Totalmente. Ele é um poeta. Toda a operação do romance dele é pela poesia. É pelo arquétipo, pela imagem. Eu concordo, porque a poesia é um impulso erótico na linguagem. É onde a linguagem mais dança. Mais busca o outro corpo. Mais sai de si. É como fazer a história do mundo como uma história de imagem. É uma transformação ininterrupta. Você não fica contente com uma única forma. Quer outras formas sempre. É esse erotismo incansável.


JC - E como você lida com outras formas de escrita que não a poesia? Porque, no seu blog, você escreve muita prosa, mas que é totalmente poética.

FC - Isso é um defeito de comunicação. A poesia é um defeito de comunicação. Eu não sei pensar diferente. Meu pensamento vai ser sempre poético. Seja em crônica, em contos, ou em qualquer outro suporte. O que eu quero, realmente, é o arrebatamento. Eu acho que a poesia tem essa gravidade, essa urgência do desaforo. Na hora que você xinga, mobilizas todo o seu pulmão, todo o seu corpo. Você quer mudar aquilo. Acho que a poesia é realmente uma intervenção. Ela não vai agradar ninguém. Acho que a gente nasce para perturbar, conturbar. A gente já nasce gritando. Poesia é manter a força do grito inicial.


JC - Quer dizer que, em qualquer suporte que você esteja escrevendo...

FC - Eu vou estar incomodando...


JC - Ou pelos menos vai estar sendo poético?

FC - E o que é a poesia? A poesia é incomodar o senso comum. Aquilo que você tem como verdade, a poesia é do contra. Ela vai tentar mostrar que não é bem assim, que pode ser de outro jeito. Um exemplo: lá no blog, eu fiz um texto sobre dar um tempo. Eu acho essa expressão "dar um tempo" totalmente equivocada. Na verdade, o que se tem que dar é distância. Num outro, eu questiono o fato de as pessoas lamentarem quando a paixão se transforma em amizade. Pior é aquela paixão que não se transforma em nada. Mas é ótimo que uma paixão se transforme em amizade.


JC - Falando nisso, qual sua relação com essas outras escritas, o blog, o jornalismo? Elas te atrapalham? Você pensa em escrever um romance?

FC - Primeiro, a poesia não é trampolim para nada. A gente lida com aquela história de que "ele escreve poesia... quando ele vai escrever um romance?" Como se fosse uma promoção. A minha competência pode ser o fato de ter escolhido bem cedo a minha incompetência, que é não escrever romance. A minha competência é a poesia. Então, não vou ser promovido (risos). Agora, em relação a outras escritas, como o blog, acho que tudo isso é um processo permanente de investigação. Eu não me diminuo para escrever no blog. Pelo contrário, eu me dedico a aquilo, como se fosse um ritual, um momento extremo da minha vida. Tem pessoas que pensam que vou colocar um texto intermediário do blog. Não. Eu quero é a comunicação. Eu não escrevo para ser ilegível. Tem pessoas que acabam escrevendo para si mesmas. Ou seja, são tão egoístas, que só elas entendem o que estão escrevendo.


JC - Você acredita que por causa dessa tentativa de comunicação, você e outros autores de sua geração têm conseguido desmistificar a poesia para um público mais jovem?

FC - Acredito e espero que sim. Porque não adianta não comunicar nossas experiências. Eu acho que a gente está num tempo rápido, tem que aproveitar a clareza e a claridade. Há que se tirar proveito dela. É muito mais importante participar desse tempo, do que ficar pensando numa imortalidade. Por incrível que pareça, ainda há uma teimosia em comprar cadeiras no céu. Eu não aceito isso. Acho que a literatura tem que ser uma cadeira de praia, dobrável, que se pode levar consigo.


JC - Seu blog tem uma quantidade enorme de leitores, mas quase nunca os comentários são assinados por leitores do sexo masculino. Porque as mulheres ficam mais à vontade para falar sobre poesia?

FC - Não sei se isso não está mudando. Às vezes o homem sentia vergonha de suas dúvidas, de se expor. Mas eu acho que isso está mudando um pouco. Tem alguns homens que deixam comentários, mas realmente a predominância é de mulheres. Eu não sei se falo mais para o público feminino, será que é isso? Se bem que, como as mulheres, eu também adoro discutir relacionamento (risos).


JC - Seu livro suscita algo de biográfico. Essa impressão é verdadeira? Quanto da sua vida tem neste livro e o quanto foi imaginado?

FC - Aquilo que eu imaginei também é memória. A partir disso eu complico tudo o que é discernimento biográfico. Porque eu posso ter um impulso a partir de uma vivência, mas ser apenas um impulso. Eu posso chegar onde o fato não conseguiu alcançar. Mas a melhor forma de guardar um segredo é realmente mostrar ele. Então, eu me exponho. Se você fala o segredo com a informalidade de algo simples, você não vai estar chamando a atenção para ele, e as pessoas até vão esquecer. Eu me exponho de uma tal forma, que as pessoas não acreditam que aquilo seja minha vida. Ou pode acontecer o contrário. Eu posso expor algo que eu imaginei com tanta intensidade, que os leitores acreditam que é minha vida. Eu escrevi vários textos sobre separação. Então, recebi uma quantidade enorme de mensagens no correio eletrônico, tentando me consolar. Mas eu nunca me separei, eu nunca tive num momento tão bom na minha relação.


JC - Então, para ficar no clichê, você é um fingidor que sente?

FC - Realmente, você tem que estar provocando o sentimento. Eu sou uma esponja, uma antena. Escuto tudo o que me falam, e aquilo vai fermentando em mim, adubando, eu preciso sempre dar uma resposta. E essa resposta vai ser sempre uma pergunta ao senso comum. Eu acredito então que me exponho com muita violência. E porque eu exponho a minha intimidade com violência? porque a gente está no tempo de celebridades, em que a gente tem uma falsa intimidade com as pessoas. A gente sabe que um ator se separou, é informado de todos os detalhes, mas a gente não tem a intimidade de uma vida. Não é uma relação consolidada (entre as celebridades e o público). E eu sou contra a separação entre a vida e obra, entre a privacidade e a literatura. Eu quero confundir tudo, porque eu desejo que o leitor tenha uma densidade de experiência ali por detrás do texto. Eu não quero a falsa exposição da celebridade. Eu quero a verdadeira exposição de alguém comum.


JC - Você pensa em escrever para criança?

FC - Eu escrevi o livro infanto-juvenil Porto Alegre, o dia em que a cidade fugiu de casa, que faz parte de uma coleção na qual 27 escritores retratam uma capital do País. Conta a história de um menino que achava que a cidade se resumia ao seu bairro. Um dia, ele pega um ônibus errado e se assusta com o tamanho do lugar onde vive.


JC - E essa história é mais ou menos real?

FC - A história é real, os desdobramentos dela é que não são. Eu sou um mentiroso compulsivo. Há duas formas de mentiroso, o maligno, que quer substituir a verdade. E o mentiroso benigno, que não está compentindo com a verdade. Ele quer dar mais valor à verdade, chamar a atenção da verdade.


JC - Você ordena o mundo pela poesia? Ela é uma maneira de mostrar as coisas pelo seu ponto de vista?

FC - É. A poesia é uma maneira de organizar o mundo. É isso que eu tento fazer com a escrita. Organizar o mundo nessa caixa de sapatos que eu tenho.


JC - Se existe essa tentativa de ordenamento, pode-se dizer que, num primeiro momento, a sua poesia trata de embaralhar o mundo, de questionar o óbvio, de confundir as coisas, mas ela vai reordenando o mundo enquanto o embaralha? Sua idéia é que, ao finalizar o livro, o leitor pense de forma semelhante àquela que você propôs como fio condutor da obra?

FC - Talvez o que eu faça seja confundir o que é dado como certo, o evidente, o óbvio, para trazer uma nova organização, que é a intimidade. Porque a intimidade é uma organização, é uma ordem doméstica. Eu acabo provocando um caos para organizar o caos depois. Então, eu acredito que eu faço isso. Mas o meu mundo sempre vai ser a miniatura da família. Eu sempre estou falando das relações familiares, eu acho que todos os fantasmas, toda a opressão, todas as euforias estão ali numa pequena família. A família acaba sendo um fantasma da sociedade. É um espelho da sociedade. Por mais que você tente dominar, muitas coisas só serão entendidas depois, são atos involuntários, reflexos, condicionados.


JC - São aqueles momentos em que você se pega dizendo as mesmas coisas que seus pais diziam?

FC - Pois é. Coisas que você odiava, e de repente está repetindo de forma exatamente igual para seus filhos. Eu acho que é necessário se ter muita atenção nas próprias relações familiares para não repetir estruturas arcaicas. Tem que queimar receita. Mesmo que você erre, mas que erre com perfeição.

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