ESSE GEMIDO
Pintura de Francis Picabia
Fabrício Carpinejar
Não costumo sentir ciúme. Mentira, eu sinto, mas disfarço. Eu somente sei disfarçar o ciúme quando não o sinto - a verdade é essa. Mas não imaginava que chegaria a tanto. De repente, minha mulher começa a gemer ao comer queijo e goiabada. Corta devagarinho, em fatias mínimas, para não extraviar nada do prato. Um gemido gostoso, intercalado, luzindo os dentes. Um gemido que me faria gemer para que ele não terminasse. Um gemido que domina os ouvidos por inteiro, ainda mais mobilizador do que um sussurro. Um gemido com o pescoço esticado - se é que sou claro -, altivo, intermitente. Um gemido discreto, de quem não quer entregar o prazer de uma só vez, que abafa o prazer para que ele aumente secretamente. Um gemido igual ao canto das cigarras, que se avoluma com a noite. Um gemido que deixará batom no guardanapo, no talher, no dedo. Um gemido sem herdeiros. Um gemido sem água mineral. Um gemido bebendo a sede. Assistia o gemido com inveja. Com raiva. Todos os sentimentos ruins o admiravam. Ainda que tenha dado alegria para ela, nunca provoquei esse gemido. Esse gemido é filho único dela com ela. Não há como participar. Não é um gemido de irritação, da rotina, da longevidade da tristeza. É um gemido assobiado. Um gemido musicado em flauta. Um gemido de varanda, não de janela. Um gemido que é vento contido. Ela ficou uns quinze minutos sem falar, sem a necessidade de comentar, de se fazer presente, de chamar minha atenção, entretida com os movimentos faciais. Emudeci para não atrapalhar o andamento. Não encontrei um assunto importante para interrompê-la. Era uma reunião de trabalho com a saliva. Sua língua limpava o canto dos lábios com a rapidez da luz. Não sobrava nenhuma réstia do lado de fora do rosto, para que entendesse a comoção. Contentamento egoísta, passional. Os cílios faziam escova a cada escuro das pálpebras. Poderia ficar excitado se não estivesse apavorado. Não conhecia esse gemido. Não o tinha ouvido antes. Surgiu inesperadamente na mesa. Ela me traiu com uma porção de Romeu e Julieta. Depois de comer, apenas disse, satisfeita: "vamos embora". Como se não houvesse alguma coisa mais importante a descobrir e esperar. Recusou café. Não repetiu o prato. Gemido não se repete, o que explica a gravidade de meu ciúme.
quinta-feira, 7 de janeiro de 2010
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