quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/17/2006 09:34:04 AM

Jornal Zero Hora, Caderno Cultura

Sábado, 17/06/06








CONTINUAR QUINTANA


Um sujeito está sozinho velando um amigo morto. Dá uma escapada para molhar a garganta e, quando volta, surpreende o cadáver em pleno ato de... Essa pequena história, de autoria de Mario Quintana, publicada originalmente em 1946, ganha uma nova série de finais. A convite de Zero Hora, no centenário de nascimento do poeta alegretense, escritores brasileiros de diferentes gerações aceitaram o desafio de apresentar uma continuação para Tableau!



Literatura

A sós com uma desconcertante criatura


Parece sacrilégio, mas é antes uma homenagem, ou ainda un divertissement, como bem definiu o poeta, professor e crítico de arte Armindo Trevisan, amigo próximo de Mario Quintana. Ele e outros escritores brasileiros contemporâneos foram convidados pelo Cultura a escrever um final alternativo ou uma continuação para Tableau!, um dos textos mais saborosos do mestre alegretense - nosso "poeta-mor", ainda segundo Trevisan. Tableau! apareceu pela primeira vez no número 5 da revista Província de São Pedro (confira na contracapa deste caderno). Chegou em livro em 1948, em Sapato Florido, e hoje está incluído na Poesia Completa de Mario Quintana, editada pela Nova Aguilar.


Versão original de Mario Quintana


Tableau!

Nunca se deve deixar um defunto sozinho. Ou, se o fizermos, é recomendável tossir discretamente antes de entrar de novo na sala. Uma noite em que eu estava a sós com uma dessas desconcertantes criaturas, acabei aborrecendo-me (pudera!) e fui beber qualquer coisa no bar mais próximo. Pois nem queira saber. Quando voltei, quando entrei inopinadamente na sala, estava ele sentado no caixão, comendo sofregamente uma das quatro velas que o ladeavam! E só Deus sabe o constrangimento em que nos vimos os dois, os nossos míseros gestos de desculpa e os sorrisos amarelos que trocamos
.



por Flávio Moreira da Costa


Até os postes morrem. Sei disso porque escrevi a história de um poste que se chamava Espia Só. Natural que eu morra também. Os poetas, como os postes, também morrem. Espia só!


Morto eu. Mas eu já estava acostumado, desde "a vez primeira que me assassinaram", e depois, "cada vez que me mataram" quando "foram levando qualquer coisa minha". Morto. Pelo menos na hora em que percebi , em pleno velório meu que estava morto - e despertei.


Isso posto, ninguém no meu último e final poema, a confirmar nossa solidão em vida. A posteridade, por definição - e se chegar - chega depois. Tarde demais. Ansioso, senti fome, muita fome. Se flores houvesse - as flores que outro poeta pediu em vida - eu as comeria. Não havia; mastiguei as quatro velas que alguém - por simples desencargo de consciência, suponho - colocou ao lado do meu caixão. Talvez as velas me iluminassem por dentro, como a poesia me iluminou em vida, a poesia agora vela apagada.


Mais eis que alguém entra no meu velório inopinadamente (não gosto desta palavra mas acho que já a usei por escrito) - e ali, na minha frente, olhos abertos de espanto, a tal pessoa mal consegue esconder seu susto, seu sorriso amarelo e...


Alguém - quem mesmo? Mas...


Fiquei aterrorizado, e reagi com um sorriso branco de cera, quando vi que ele se parecia com o poeta Mario Quintana: meu Deus, ele era o poeta Mario Quintana !


Talvez Mario Quintana desmaiasse se soubesse, como eu percebi na hora, que Mario Quintana era eu.


Escritor gaúcho radicado no Rio, Flávio Moreira da Costa, 64 anos, é tido como um dos pioneiros da literatura policial no Brasil. Ganhou duas vezes o prêmio Jabuti, por O Equilibrista do Arame Farpado (1998) e Nem todo Canário É Belga (1999). Também é autor de uma biografia do compositor Nelson Cavaquinho e publicou mais de uma dezena de antologias de contos, como Cem Melhores Contos de Humor da Literatura Universal (2001) e Cem Melhores Contos de Crime & Mistério da Literatural Universal (2002)


por Marcelino Freire


Onde você aprendeu? Hein? A morder velas? Comer? Lamber? Esse fogo veio de onde? Da vida eterna? Quem ensinou essa fome? Diz, fala. Você que sempre foi um cara sem graça. Uma existência tão limitada. Chama apagada. Sei não. Eu mesmo queria esse tipo de ressurreição. Voltar diferente. Se quiser, vou ali de novo, no bar do seu João. Trago vela de todo tamanho. De toda cor. Para você morder. Como nunca vi você morder. Até o fim do pavio, meu amor.


Escritor pernambucano radicado em São Paulo, Marcelino Freire, 39 anos, é autor de eraOdito (2002) e BaléRalé (2003), entre outros livros. Edita a revista de literatura PS:SP


por Moacyr Scliar


Uma súbita suspeita o assaltou e ele perguntou: tu achas que as velas podem me fazer mal? Acho que não, respondi, e expliquei:


- As velas são, basicamente, compostas por parafina e estearina. A parafina, obtida pela destilação fracionada de petróleo, é uma matéria sólida, incolor, inodora e insípida, constituída principalmente de hidrocarbonetos saturados. Dificilmente combina-se com outros produtos, como aliás o sugere o próprio termo parafina, que vem do latim "parum affinis", pouca afinidade, e portanto inocuidade: evidência disto é o fato de que a parafina está presente até na goma de mascar. Quanto à estearina, é uma substância que, devido às suas características físicas peculiares, substitui com vantagem diversas gorduras hidrogenadas na indústria de alimentos, mesmo porque, não tendo sido submetida a processos de hidrogenação artificial, está livre de certos nocivos ácidos graxos. Pode, portanto, comer à vontade - e bom proveito.


Escritor e médico sanitarista gaúcho, Moacyr Scliar, 69 anos, é colunista de ZH, membro da Academia Brasileira de Letras desde 2003. Publicou mais de 50 livros. O mais recente é Os Vendilhões do Templo (2005).


por Cíntia Moscovich


Nunca se deve deixar um defunto sozinho. Ou, se o fizermos, é recomendável tossir discretamente antes de entrar de novo na sala. Uma noite em que eu estava a sós com uma dessas desconcertantes criaturas, acabei aborrecendo-me (pudera!) e fui beber qualquer coisa no bar mais próximo. Pois nem queira saber.


Quando voltei, entrei inopinadamente na sala. Lá estava o defunto, sentado no caixão. Desfolhava distraído uma flor arrancada a uma coroa. Ao me ver, o coitado tomou um susto ainda maior do que o meu. Pediu-me desculpas pela insolência de quebrar o protocolo das exéquias, morto tinha mais que ficar deitado, mas tinha se chateado com aquele marasmo.


Meio catatônico, afirmei que eu é que tinha de pedir desculpas - falta de educação deixar um morto sem ninguém para fazer companhia. Ele fez um gesto de deixa-disso com a mão lívida e, animado, disse que morria de vontade de fumar: o médico havia proibido, fazia um tempão que não fumava. Eu, que havia comprado duas carteiras de cigarro no bar, ofereci um dos meus, ele que se servisse, não ia mesmo fazer a mínima diferença àquela altura do campeonato.


Ficamos ali, fumando e proseando, até que se ouviu barulho de gente que chegava. O morto apagou o cigarro no cinzeiro que lhe alcancei e voltou a se deitar no caixão. Cruzou as mãos ao peito e, antes de fechar os olhos para a eternidade, agradeceu-me a camaradagem e o maço de cigarros ainda fechado que coloquei no bolso de seu paletó de enterro. Sabia-se lá que marca fumavam no Outro Mundo.


Foi enterrado com uma expressão de viva felicidade.


Escritora e jornalista gaúcha, Cíntia, 48 anos, é autora de, entre outros livros, Arquitetura do Arco-Íris (finalista dos Prêmios Portugal Telelcom e Jabuti, 2005)


por Armindo Trevisan


Nunca se deve imaginar um defunto como uma desconcertante criatura. O defunto é um vivo que se esqueceu de viver. Tão logo o acondicionam num ataúde, assume poses irreconciliáveis com suas atitudes anteriores. Se era um pândego, fica sério. Se era uma mundana, junta as mãos sobre o peito. Se era um político, revela as primeiras intenções de suas segundas intenções. Quando morri, esforcei-me por não fechar os olhos. Já fora informado de que alguns defuntos eram velados com os olhos abertos. Pude assistir ao meu velório, um velório sem defunto, já que eu estava e não estava no caixão. Noutras palavras, coçava-me, e ninguém o percebia. Ignorado pelos circunstantes (que bebiam café e lanchavam nas cercanias), não precisei comer toco de vela, nem trocar sorrisos amarelos com ninguém. Prevenira de que não me velassem à noite. Para saber, pois, que eu estava realmente morto, bastava-me ver a cara dos presentes. Suas lágrimas eram maravilhosamente falsas. Diante disso, chorei com pena deles. Acho que isso me garantiu o sepultamento. Isto é: escapei à cremação porque: na última hora, na hora H, um neném chorou. Os meus entes queridos lembraram-se da criança que eu fora - uma criança realmente amorosa!


Poeta, professor e crítico de arte, doutor em Estética pela Universidade de Friburgo (Suíça), autor de, entre outros livros, O Rosto de Cristo (2003). Acaba de publicar o livro Mario Quintana Desconhecido


por Ivana Arruda Leite


Foi então que o ex-defunto perguntou-me com seus olhões recém-abertos: "Está servido?". Percebendo que o homem estava a fim de conversa, resolvi matar minha curiosidade: "Amigo, você que esteve na outra margem, me responde: como são as coisas do lado de lá?". Ao que ele respondeu com visível desagrado: "Mário, essa história de imortalidade é um engodo. O que há é a mesma paisagem, com os mesmos burros e as mesmas vacas pastando". Abracei-o comovido e convidei-o para uma cerveja, mas ele disse que estava tarde.


Escritora e socióloga. Paulista de Araçatuba, Ivana Arruda Leite, 55 anos, é autora de Histórias da Mulher do Fim do Século (1997) e Falo de Mulher (2002)


por Celso Gutfreind


E foi bem aí que meu olhar em direção ao morto abalou, novamente, a calma daquele começo de eternidade. E disse uma verdade, pois os olhares não mentem, sobretudo para um morto entre velas roídas até o sabugo. A criatura, sem olhar, como é comum com defuntos, respondeu com palavras como se fosse um vivo:


- Tens certeza ?


Antes do fim da pergunta, ele se preparava para partir, já que tinha conquistado o raro direito de ir embora. Segurei-o por um instante infinitamente menor do que o tempo que agora lhe cabia:


- Estou vivo; como posso ter alguma certeza nesta vida?


Mortos raramente olham na cara, mas aquele defunto de araque me olhou. E me lançou ao dever de um vivo, o de encarar a verdade. Sim, eu o amava. Era isso o que o silêncio mortal de nossas vidas encobrira durante a vida toda. Foi isso o que eu, morto em vida, disse finalmente para aquele vivo em morte.


A cena só não ficou ridícula, porque declarações de amor, diante da morte, tornam-se profundas, convincentes e originais.


E, desde então, nunca mais fomos os mesmos.


Escritor, professor e psiquiatra gaúcho, Celso Gutfreind, 43 anos, é autor de 17 livros, entre infantis, ensaios e poesias. Tem doutorado e pós-doutorado em Psiquiatria Infantil pela Universidade de Paris


por Fabrício Carpinejar


Nunca se deve deixar um defunto sozinho. Ou, se o fizermos, é recomendável tossir discretamente antes de entrar de novo na sala. Uma noite em que eu estava a sós com uma dessas desconcertantes criaturas, acabei aborrecendo-me (pudera!) e fui beber qualquer coisa no bar mais próximo. Pois nem queira saber. Quando voltei, quando entrei inopinadamente na sala, estava ele sentado no caixão, comendo sofregamente uma das quatro velas que o ladeavam! Parecia um mendigo engolindo a barba junto. Não queria atrapalhar sua refeição. Não gosto de interromper uma solidão jantando. Mas o defunto começou a soluçar chamas, desesperadamente. Aproximei-me com medo de que eu estivesse morto. Afinal, quando um morto o cumprimenta, pode ser que ele esteja mais vivo do que você que não responde. Bati levemente em suas costas, para desentupi-lo de morte. Ele sorriu com cinismo:


- Havia esquecido de fazer a refeição.


Deitou de vez e, quando acreditava que era uma alucinação, teimou em sentar. A boca contorcia-se em careta, uma criança descobrindo um novo som. Encheu as bochechas e soltou com galhardia um imenso arroto, que ressoou no São Miguel e Almas.


Saí gritando pelos corredores:


- Fogo-fátuo, fogo-fátuo, fogo-fátuo.


Poeta e jornalista gaúcho, Fabrício Carpinejar, 33 anos, é autor de, entre outros livros, Terceira Sede (2001). Seu trabalho mais recente é o volume de crônicas O Amor Esquece de Começar (2006)

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