quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

6/11/2005 02:38:33 PM

RETRATO DOS ANIMAIS DA CASA

Gravura de Camille Pissarro


Fabrício Carpinejar





Meu avô não queria matar os bichos de casa. De modo nenhum. Não era vegetariano. Só admitia comer os animais dos outros. "Onde já se viu comer bicho que já escutou minha voz? Vou comer minha voz dentro do bicho", ele afirmava. Tanta vida por viver desentranhada. A vó imaginava que o marido havia passado da idade de ter razão, para entrar na idade de ter desejos. Queria cozinhar e não havia rendimentos para pechinchar no açougue a cada manhã. Os vizinhos o viam como doente: soltou-se do prumo, do juízo, do cabresto de Deus. Criança não apresenta opinião formada, mas braços arrepiados. Meu avó, personagem de si mesmo, nunca me deu tempo para criar amigos imaginários. Fui convidado a ajudá-lo no sistema de proteção. Sacudia levemente a cadeira de balanço na varanda, com a bengala engatilhada, e eu no primeiro degrau da escada de madeira, com a funda em punho. Boi, vaca, porco e galinha ganharam escolta dali por diante. Os primeiros animais do bairro engordados para envelhecer. Boi, vaca, porco e galinha não diziam muita coisa. O vô teve sua primeira idéia de seguro de vida dos animais. "O que recebe nome não pode ser morto, tornando-se crime." Começou dar nome para todos os bichos. Virou um Messias septuagenário a batizar um por um dos animais que encontrava em sua pequena chácara. A galinha ruiva virou "Marlene", o cavalo baio assumiu a condição de "Misturado", o porco dengoso apareceu como "Rolando", a vaca manca ressurgiu na forma de "Medéia". As árvores foram nomeadas por engano. Os cachorros, os únicos que realmente recebiam apelido, se sentiram constrangidos com a concorrência e deixaram de latir.


Como esquecia os nomes que havia dado depois de uma semana ou trocava o boi pela galinha, o avô preparou um caderninho de fiado para anotar, com as características e sinais de nascença dos animais. A avó estava horrorizada com a obsessão do seu velho. Internar não se podia, internar um velhinho no interior significava, no máximo, colocá-lo no quartinho. Tudo se resolvia sem escândalo, com a indiferença. O ruim é que a indiferença se assemelhava à tolerância e o vô tomou coragem para urinar cada vez mais sorrindo na horta. Quando a galinha ruiva virou galinha recheada no Domingo dos Ramos, o avô iniciou um longo jejum. Magro como copo de cerveja parado. Comia vento e rejeitava inclusive os farelos do vento. Alegria das moscas. No fatídico dia, percebeu a galinha esparramada e dourada e suspirou: "Marlene, Marlene, perdoa, eles não sabem o que fazem?". Tampouco comi a Marlene, sofria de impotência infantil. A Marlene merecia um perfume melhor do que o orégano. O avô ficou revolto, viraluto. Uma de suas teorias era o embrulho do pão: papel jornal estraga o gosto, o pão devia ser enrolado em papel fino, seda. Ele sofria coisas fora de hora. Sofrer é sentir as coisas sem pensar. "Onde já se viu comer bicho com nome? Vou comer meu nome dentro do bicho", afirmava. Aprendia o segredo. Não entendia as palavras por inteiro, entendia o final delas. As brigas me animavam. Amor que não se dói é dano. Em nossa volta, a luz queimava como um seio fora da blusa. Dar nome a um animal não o impediu de morrer, assim como homem de muitos nomes vai embora sem dó. Vô não desistiria da tosse. Seu silêncio não baixava a cabeça. Na surdina, traficava metade de meu prato a ele e a cidade se espantava que continuava de pé depois de quarenta dias sem comer. Havia gente fazendo aposta no bar do Português. "A morte existe para ser respeitada entre os vivos. A morte nada é para os mortos", avisou. O vô teve, então, sua segunda idéia de seguro de vida dos animais. Conseguiu uma máquina de fotografar emprestada do filho da capital e foi ao campo. "Animal com nome e com fotografia não pode ser morto, tornando-se crime", sentenciou. Deus ou é assunto ou é alucinação. O banhado transformou-se em estúdio. Minha missão consistia em ajeitar o rosto dos animais para foto. A vaca baixava a baba para o capim, obrigando-me a levantar seu queixo várias vezes. O cavalo cuspia feno, avarento, e o cerceava para possibilitar um ângulo apropriado. Salpiquei a galinha, a outra, a Lurdes, de maquiagem de pó, a dissimular sua brancura. Depois de um mês e aproveitando a saída da mulher para a feira de verduras, o avô colou a coleção de fotos na parede da sala. Vinte e dois animais 3X4. Foto de passaporte, de identidade, de carteira de trabalho. Foto séria, para não mostrar o prejuízo dos dentes. Ajeitou-se na mesa, enrolou um cigarro de palha e morreu fumando, com os olhos boiando em sua Arca de Noé. A brasa escorria a boca. Sua boca cintilava sozinha.


(Da minha coluna na revista Idéias, Travessa dos Editores, Ano II, número 22)

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