quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/7/2005 10:43:45 AM

JORNAL DO BRASIL, CADERNO IDÉIAS, 07/05/05


CARTAS AO HOMEM DE 40

O gaúcho Paulo Bentancur estréia na poesia com jeito de prosa


Fabrício Carpinejar

Jornalista e poeta




Bodas de osso

Paulo Bentancur

Bertrand Brasil

140 páginas

R$ 25


São poucos os escritores de estilo hermafrodita, capazes de atender tanto os caprichos femininos da poesia como os masculinos da prosa, sem misturar os gêneros ou criar uma interdependência nociva entre eles. Os mineiros Luiz Ruffato e Iacyr Anderson de Freitas e o gaúcho Fausto Wolff são bons exemplos contemporâneos de articulação nos dois gêneros com autonomia e discrição. Nenhum deles está fazendo prosa em versos ou versos em prosa. Suas obras acontecem em ambos os planos com suficiência salutar.


Bodas de Osso, estréia de Paulo Bentancur na poesia, é um livro que pende para a prosa. Não é um estigma, muito menos uma limitação. Trata-se de uma escolha do próprio autor: ''Isto não é um poema, não é/ nem mesmo uma confissão, não é/ sequer o olhar turvo de um espírito/ sem a luz de quem, ao lê-lo, poderá/ ver mais que um poema. Ou menos''. Natural de Santana do Livramento (RS), Bentancur já havia feito incursão lírica com Instruções para iludir relógios (1994, Artes e Ofícios), mas é a primeira vez que assume o verso como forma luminosa de sua voz. É verso por uma questão técnica, pelo espaçamento e formatação, mas não pelo espírito, que remete mais ao encaixe semântico da narrativa, e menos aos valores fônicos e musicais. Se a obra estivesse disposta em contos, também não sacrificaria o efeito e o método. Os períodos são longos, explicativos, carregados de conjunções, locuções e advérbios, que cessam subitamente o andamento. Assim encontram-se, com freqüência, poemas interrompidos como ''o silêncio é feito de muito,/ máquina de fôlego e paciência./ O barulho, no entanto, só resume, inibe, some,/ surdo ao que não o escute''; ''a saudade, isto é, a morte''; ''o trio, porém, ficou/ atiçando uma barata/ tonta'' e ''O prato, no entanto, a encher-se/ desse canto que a louça/ oferta a quem a empilha''. É possível detectar ainda terminologias, tal a do boxe, que sobrecarregam o texto de especificidades e não libertam a iluminação e o sentido: ''Só há uma paz:/ clinch quando/ ao punch anula,/ e a à gula do jab./ Mas uma hora cai,/ última paz.''


Essas marcações didáticas e figuras de apoio dificilmente são percebidas em uma narrativa, mas cumprem uma diferença fundamental na poesia, breviário da concentração e da leveza. Impedem o deslizar de azeite do lirismo. A poesia é como azeite aquecido, escorre e queima, borbulha e salta. Nada a impede de explodir. Em Bodas de Osso, o azeite está frio propositalmente, como a trancar e isolar um tema arenoso e pessoal: a infância sofrida. Não há o estouro, a culminância, mas um adiamento progressivo da proximidade com o fogo. O escritor conta uma história, de nenhuma maneira canta, tomado de uma timidez de quem ainda não se perdoou pelas escolhas feitas ou pelo rigor do destino. O humor irresoluto, enviesado, explicita o nervosismo. ''No primeiro Natal sem mamãe/ já tínhamos mais de quarenta/ e todos choramos./ Menos minha filha, admirada/ com a barba torta de Papai Noel.'' Não é um humor que provoca o riso, porém acentua a dor ainda mais. Não se caracteriza como humor negro, e sim humor amarelo, da piada triste, da impossibilidade da alegria.


A antipoesia de Bentancur é, curiosamente, sua força dramática. Impõe dispersão interna aos relatos, que oscilam com a veracidade e intensidade da memória. O leitor é jogado de volta aos acontecimentos escolares e caseiros de formação como o receio do filho que se concretiza ao perceber que ninguém veio buscá-lo na escola em sua primeira aula.


Uma comparação provocativa é enxergar o livro como uma série de cartas do escritor endereçadas a si mesmo, passando a limpo sua trajetória durante a crise dos 40 anos. E não há como não se emocionar com as ''desventuras epistolares'' de uma criança isolada, sem amigos e interlocução, de condições financeiras limitadas, a sobreviver da literatura longe da compreensão da família e com expectativa zero de sucesso.


Entra-se em contato com uma completa falta de esperança (ou seria de fé?) da persona poética de Bodas de Osso. O passado é desigual e avarento, o futuro tampouco presta. Essa dupla dificuldade é a senha do percurso, a dificuldade de se esquecer e a dificuldade de lembrar. O que um dia se viveu não será coberto totalmente pela terra ou redimido inteiramente pelo céu. O limbo é aqui.

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