quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/25/2004 11:40:57 AM

MELHOR O AMIGO DO QUE A PIADA


Fabrício Carpinejar


A terra tem um gesto feminino, de cuidar do filho. O vento faz um gesto masculino de se arremessar para longe. Há rosto que ficam, sem pedir licença, que sentam na memória como se houvesse uma velhice dentro deles pedindo assento. Meu rosto é estranho, como se não tivesse sido acabado. Na infância, na época que era só osso de passarinho, colegas debochavam que os médicos aproveitaram a placenta e esqueceram o feto. Eu não sabia o que era placenta, palavra feia que não cabe num poema. Hoje escuto, já protegido de mim, que Carpinejar é feio, com uma trompa de elefante em feição de esquilo, que tem uma cara de morcego sacudido de luz (essa, inventei agora) e denominações muito piores que é melhor esquecer para proteger a estima. Meus olhos caíram porque viram a verdade em excesso. Eu brinco que o feio chama mais atenção do que o bonito. Basta uma olhada e ninguém esquece com facilidade.


A VIDA É CURTA DEMAIS PARA NÃO SER GENEROSA


Sofri bastante com as brincadeiras, mudava de rua ou do caminho da escola para não atravessar o corredor polonês ou ser ofendido na frente de quem eu gostava. Mudava de apelido com a mesma facilidade que migrava de campo de futebol. Eu nunca me importei de ser ofendido, eu me importava com o sofrimento de quem me amava e estava junto. Eu me envergonhava pelos outros em mim. Tantas vezes fiquei isolado em minha cadeira, esperando o sinal para escapar de qualquer gozação. Ainda corro com a respiração quando escuto um sino. Essa vulnerabilidade, desproteção, me antecipava aos que eram deslocados por um detalhe físico, um desajuste social, uma diferença. Eu me sentia responsável por aqueles que se calavam. É como se minha mãe dissesse na minha consciência antes de ir para o trabalho: 'cuida bem de teus irmãos menores'. Escrever é não calar as mãos. É proteger o fogo como quem tapa um filho com o próprio corpo.

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