quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/14/2006 12:42:46 PM

MINHA MULHER É MAIS DO QUE UM DOMINGO

Pintura de Edward Burne-Jones


Fabrício Carpinejar





Tenho pudor em chamar minha mulher de mãe e mudar a categoria de motorista. Tomo cuidado para não me transformar em irmão de meu filho. Posso me acostumar ao chamado e perder a intimidade de marido. É perigoso: convivo com amigos que se referem a sua esposa como mãe; curioso enxergar o homem feito a puxar conversa com esse apelo no almoço ou jantar, eu não consigo imaginar o casal trepando. É Édipo demais para uma Jocasta só.


Compliquei o caminho do Vicente, que demorou para dizer "mãe" porque me imitava e chamava Ana. Valorizo Ana, assim como a conheci, pois ele não deixa de ser - no breve nome - amante, amiga, confidente, louca, serena, sensível, gostosa, e também mãe. Não é uma coisa ou outra, é tudo ao mesmo tempo, inclusive o que não quero, inclusive o que me desafia. Quando erro, peço desculpas. Amo pedir desculpas, pois ela se irrita, esbanja vontade de discutir e já deixei a cena. Pedir desculpa é o jeito masculino de ter razão quando faltam argumentos.


Ana cuida dos meus filhos melhor do que eu, não há dúvida. Ela cria um passo e faço o mesmo, sou um mímico de sua música. Até Mariana, que não partiu de seu ventre, procura ela primeiro para conversar sobre namorados e incertezas da escola. São cúmplices desde a origem e vivem me provocando. Tento entrar na conversa e ficam mudas de repente. Saio e escuto a balbúrdia de novo no quarto. Enquanto me provocam, estou certo de que estamos bem. Posso ser consultor amoroso fora de casa, dentro de casa sou o último a ser consultado. Acabo tão feminino, tão maternal, que jogo contra mim. Em minha família, são todos contra mim, inclusive eu. Ganhamos por W.O.


Com Vicente, não há saída. Caso Ana dê alguma ordem, será inútil convencer o menino do contrário. De noite, ele sempre a chamou. Quando vinha cambaleando, com os cabelos em arame farpado, para alcançar o leite, ele chorava tanto que era difícil desacreditar da minha feiúra. Acordava em desvalia.


Acostumei-me a ser coadjuvante e não é nenhum demérito nisso. Minha única vantagem é no espaço do armário, Ana ainda não percebeu ou não quis me xingar. Ela conta com cinco prateleiras e uma ala do cabide para comprimir os inúmeros vestidos e casacos. Por favor, não conte para ela, disponho de três alas e dez prateleiras.


Ana criou os rituais do Vicente, o café da manhã, o horário da televisão, a escala dos bichinhos com que ele dorme, decorou as possibilidades e os tipos do Power Rangers, o convenceu a sentar na cadeira de adulto nos restaurantes, a pentear os cabelos de lado, como os dela. Só Ana conhece os brinquedinhos que ele leva ao banho. Foi ela quem comprou o blusão amarelo do Bob Esponja que o guri não deixa colocar para lavar sob hipótese nenhuma.


Vicente é educado com estranhos, efusivo com os familiares, dá beijinhos quando se apresenta. No meu filho reconheço o caráter da minha mulher. Nunca consegui chegar antes na sua agenda escolar. Ela responde os recados com clarividência.


Quando ele me abraça, vira meu corpo para onde está a mãe. Para que ela veja o amor que ele tem por mim.


O amor que Vicente tem por mim ainda é amor por ela.

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