quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

5/1/2005 09:53:44 AM

PENTEANDO O RELÓGIO

Gravura de Paul Klee


Fabrício Carpinejar





Quando não havia essa obsessão pelo cinto e muito menos obsessão em agradar, ia de pé no assento de trás do carro. Enquanto meu pai dirigia, observava todos os outros motoristas pelo vidro traseiro. Acenava comovido, procurando despertar a simpatia de um casal, de uma solitária, de um senhor de chapéu. Em dias de neblina, desenhava com os dedos. Em dias de luz intensa, lavava as mãos com o sol. Andar para frente sempre foi olhar para trás. Isso deve ter ficado em mim mais do que a conta. Essa sensação de recuo involuntário. Essa sensação de olhar a janela do carro pelo retrovisor, não pelos lados. Essa sensação de esquecer alguma coisa importante e não recobrar com o tempo. Essa sensação de ouvir a música pelo fim, não no momento de seu início. Só converso com as ruas que me levam para casa. Com as outras, sofro dificuldades de me apresentar. Confio em avenidas com árvores nas esquinas. Minhas verdades foram mentiras com paciência para acontecer. Não admito mentiras piedosas, omissas, que reduzem fatos para diminuir a culpa. Mentir pode ser um ato de franqueza, pelo excesso incontrolável de verdade, não pela falta dela. Nunca vivi uma verdade verdade, que não tenha sido um pouquinho imaginada. Escrevia para melhorar o que faltava dizer, mas apenas piorava o que havia dito. Toda manhã devia me acordar pensando no pássaro, no barulho das venezianas, no café rilhando no escuro. Mas penso nos problemas a resolver. Crio problemas para não ficar ocioso. Poderia ter me facilitado, mas uma alegria inata perde a graça. Minha única virtude é preservar os vícios. O que não sei lidar é com a inimizade súbita. Brigar com alguém por trabalho e suportar essa pessoa levar a questão profissional ao plano pessoal. Não aprendi a vedar a tristeza. Ela vaza pela voz. De repente, percebe-se um desafeto onde ciscava segredos. E não adianta se explicar, desejo não se corrige. O que não foi solucionado existirá em mim mesmo depois da boca. O corpo pagará em dobro, o que gastou e o que a alma ficou devendo. Quisera desfrutar a amizade antiga dos bois com as ervas ou das folhas com as calhas. A amizade pela necessidade. Pois a necessidade é que gera a aceitação e tento justamente o contrário: a amizade pela compreensão, o que não gera a necessidade. Compreender não é concordar, é respeitar. Já necessitar é concordar antes de compreender. Quem cala o que sente está se protegendo, quem fala o que sente está protegendo quem escuta, ainda que provoque atritos e rusgas. Toda vulnerabilidade faz inimigos. De novo, sou o menino do vidro traseiro. Não deixarei testamento com antecedência. Meu original é o último rascunho. E ninguém entenderá a letra, passando a inventar o resto. Até meu testamento não será uma verdade verdade.

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