quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

4/27/2005 10:13:20 AM

CAIXA DOIS DO AMOR

Gravura de Thomas Gainsborough


Fabrício Carpinejar






Como o amor pode ser tão perdulário em seu início e tão pão-duro em seu final? Como um homem ou uma mulher se doam no começo como santos para se expulsarem depois com a implicância de demônios? Como a celebração desemboca em exorcismo? Será que a avareza do final foi disfarçada no começo? Ou aquilo que temos deixamos de ser?


Complicado equacionar essa resposta. Se o homem ou a mulher fossem o que são no enlace não haveria desenlace. Mas eles mudam. Mudam drasticamente. No início, o amor é perdulário. Gasta o que não viu. Dedica-se a seduzir como um disciplinado marceneiro. Tudo é plaina e curva. Rosa de madeira e pétalas líquidas. Enamoradas, as pessoas contam tudo, abrem suas histórias, memórias, acidentes, virtudes e proezas com uma franqueza incomparável. Em três dias, parecem que nasceram para estarem ali, um de frente ao outro, um no outro. Não se desgrudam, não se soltam. Cedem para agradar, dançam se não gostam de dançar, escutam jazz se não gostam de jazz, comem o que sentem alergia. Vencem os preconceitos e os princípios com uma espontaneidade infantil. Entregam seus mais valiosos bens sem fazer inventário. Quando conseguem ficar juntos, a entrega mútua assume a formalidade do compromisso e os dois vão esfriando a passionalidade e entram no transe 'de já nos conhecemos". E ficam ríspidos, rigorosos, rígidos dia após dia. A generosidade seminal se transmuda em indigência. As questões se reduzem à rotina e ao que precisam comer no jantar. O sorriso é esgar, contração facial involuntária, de quem não se mantém atento e está em coma. Adentra-se no terreno da audição seletiva, do fingimento. "Eu finjo de escutar e tu finges falar; tu finges escutar, eu finjo falar". Transam pela proximidade física, não pela proximidade afetiva. Antes abertos e transparentes, agora não se fala mais nada, não se confessa mais nada, se amam e dizer isso de vez em quando basta. Não basta. Sabe-se que não basta dizer "eu te amo". A gente não pode amar uma certeza. Ama-se uma verdade. Ama-se uma mentira. Uma certeza, nunca. Pode-se no máximo concordar com uma certeza, não participar. O amor é um quebra-cabeça ao contrário, há sempre uma peça por começar, nunca uma peça por terminar.


O que acontece para a troca total resultar em privação adulta? Poupa-se o amor. Economiza-se o amor. Canaliza-se a energia do amor para outros fins (afinal, ele continuará existindo). Todo amor tem um caixa dois. Todo amor tem um ladrão, um paraíso fiscal, onde alguém desvia os recursos, as experiências e a vontade que deveriam ser utilizados para a aproximação constante do casal. O amor termina não pela falta de compreensão, de amizade e de desejo, termina sim porque um dos dois quis tirar vantagem sozinho e deixou de colaborar para a imaginação. A corrupção do amor é mais alta do que a corrupção do político, pois envolve pureza e lealdade. O amor ainda não conheceu verdadeiramente a democracia.

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