quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

4/2/2006 05:25:46 PM

ESTADO DE SÃO SAULO, CADERNO 2, página 7, 2/04/06:


UMA BIOGRAFIA ESQUIVA COMO O POETA

Os Sapatos de Orfeu, sobre Drummond, é relançada e aumenta ainda mais o mistério a respeito da vida do escritor mineiro


Fabrício Carpinejar

Especial para o Estado






A poesia cura. É a palavra de cardíaco do ensaísta, jornalista e professor mineiro José Maria Cançado, 53 anos. Após passar por um transplante de coração, começou a escrever poemas que tematizavam sua recuperação e a sensação miraculosa e estranha de ter uma segunda vida. O resultado está no livro O Transplante é um Baião-de-dois. "Na UTI, não era mais o Zé, mas um outro, coração anônimo, generoso e vagabundo", lembra. Já em sua primeira vida, o verso o inspirou como leitor privilegiado. Escreveu até hoje a única biografia de Carlos Drummond de Andrade, agora relançada pela editora Globo, treze anos depois de sua primeira edição. Dividida em três partes, Os Sapatos de Orfeu (367 páginas, R$ 45) é biografia serena e sugestiva, calcada na leveza narrativa, pairando acima da erudição opinativa e da análise dos poemas. O escritor supera as dificuldades impostas pela personalidade reservada, introspectiva, que estabelecia limites para as amizades e para exposição de sua intimidade. Escapa do convencional, que seria explicar a vida pelos versos ou legendar os acontecimentos com poemas. Conserva a independência entre o fluxo da escrita e da história, aclarando eventualmente os pontos de intersecção. É um volume que cresce na subjetividade, na descrição espiritual de cenas e reminiscências, no talento de Cançado em captar o não-dito.


José Maria Cançado radiografou as várias épocas de Drummond, com a vantagem de ter escrito as memórias de Pedro Nava (Memórias Videntes do Brasil), contemporâneo e colega do poeta. Acompanha amizades desafiadoras com Mario de Andrade, Manuel Bandeira e João Cabral, entre outros, e explica os impasses e as encruzilhadas da poesia drummondiana, como o surgimento do movimento concretista nos anos 50 que o deixou em segundo plano e o levou à recomposição de suas forças com A Lição das Coisas; ou a sua aproximação do Partido Comunista e seu rompimento depois de sofrer censura. Ao mesmo tempo, mostra a duplicidade particular. Drummond manteve relação estável com amante por trinta anos, e não parecia sofrer crise de consciência com o adultério diante de sua mulher Dolores. Drummond surge ainda mais misterioso após Os Sapatos de Orfeu, que não deseja esgotar a exploração do minério. As adversidades de Cançado foram suas virtudes. Para compensar as lacunas, cumpriu uma biografia à imagem e semelhança do temperamento de Drummond: de lado, esquivo, de passadas mais rápidas do que o próprio corpo. Se não retirou a pedra do caminho, não foi soterrada por ela. Abriu a vida vigiada e contida do autor de Claro Enigma, que se torna menos indevassável e impossível de ser descoberta a partir de agora. Derrubou uma porta trancada por dentro, de chave extraviada.


Em entrevista ao Estado, José Maria Cançado, internado no Hospital Felício Rocho, de Belo Horizonte, ainda sob cuidados médicos em função do transplante, discute os pontos mais polêmicos do seu livro.


Os Sapatos de Orfeu é relançado depois de treze anos. Houve pressão para mudança de dados?

Embora seja biografia, gênero que é tomado como demônio, o livro é um companheiro de Drummond. A única coisa que enfrentei é o desconforto da família. O principal problema é que não tomei a benção com os herdeiros. Fiz de propósito, sacrificaria a isenção e a independência. Lamento que a família não cedeu nenhuma foto, que é uma forma perversa de privatização do poeta.


O incômodo se deve às amantes de Drummond, apresentadas no livro?

Pode ser, mas as amantes faziam parte da rotina do poeta e de sua compreensão de família.


Sem o acesso às fotografias, o sr. encontrou no detalhismo da descrição uma maneira de compensar as imagens?

Sim, houve a migração do visível para a escrita o tempo todo. E a escrita é mais coerente com o rosto de Drummond, sempre de silhueta.


Drummond não é homem para ser visto de frente, mas de lado?

Perfeito, ele era esquivo, atirado para frente, dono de uma passada larga. Estava fugindo em tempo integral. Só que sua fuga era também procura.


Quatro irmãos de Drummond morreram antes de completar dois anos. A morte ameaçava o poeta desde a infância? Ele se sentia meio que ocupando um lugar alheio, uma vida alheia?

Acho que não estava ameaçado, até porque tinha uma relação privilegiada com sua mãe. Foi o menino que escapou da morte, a superação do princípio preservou sua saúde depois, fortaleceu sua resistência. Drummond escolheu sua morte. Deu-se uma morte doze dias depois do falecimento da filha Maria Julieta. Não havia mais o que fazer, assim acreditava. Procurou uma morte no sentido dramático. Deixou de tomar remédios.


O sr. teve algum encontro com Drummond?

Drummond foi mais uma paisagem mental em minha vida. Meu único encontro com ele foi decepcionante, mas não deve ser exclusividade minha. Aconteceu na Livraria Francesa, na avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, por volta de 1983. Trocamos cumprimentos e acenos - difícil considerar aquilo uma conversa. Bastava chegar perto dele, que se portava como vítima de atentado. Conto no livro um abraço efusivo que Antonio Candido deu nele e que o atormentou, como se fosse um estupro. Ele falava sem parar para que o interlocutor não falasse. Falava para impedir a conversa. Não se podia perguntar nada, não deixava. Não era autoritarismo, mas timidez. O absolutismo da retração destrava o autor.


Mario Faustino advertiu Drummond na década de 50 da falta de rigor de sua atividade crítica, que elogiava todos sem distinção. Ele realmente não exagerou na política de boa vizinhança? Isso indicava sua avidez por unanimidade?

Sim, acredito que exagerou. Não se ficava sabendo qual o valor de uma obra para ele, pois confirmava e elogiava o interlocutor sem hierarquia. O inferno era o outro, tinha medo de levantar polêmicas, de desagradar. A escolha ensina, a escolha é pedagógica, Drummond escolheu, mas não quis explicar. Parecia uma pedra negra, monolítica, impenetrável. Sua presença pública é um dos mistérios que não comigo desvendar. Apesar de ser a figura mais conhecida da poesia brasileira, é que menos se expôs fora dos versos. Essa contradição fez com que se abstivesse de uma discussão mais séria da poesia. É um ponto que Faustino tinha razão. A correspondência literária de Carlos Drummond de Andrade é mesmo miúda e apática.


Drummond teve uma capacidade camaleônica de se ajustar às mudanças culturais e diferentes épocas e tendências. Quando foi deflagrado o concretismo, a crítica insinuou que ele havia virado passado, porém ele encontrou um jeito de aplicar característica do movimento em sua poética. Isso é um dos pontos que justificam sua permanência?

Na adaptação não havia traço de oportunismo, ela revela astúcia de cena literária. Pegava a bola da vez para continuar o jogo dele. No caso do concretismo, absorveu procedimentos e testou em sua poesia. Jamais mudou seu DNA, a aceitação do mundo e o amor desabrido, e sim o aperfeiçoava constantemente. Reagia com facilidade, dono de intuição forte e privilegiada, e sempre foi muito bem informado.


O que ameaçava Drummond?

Não sei, nota-se uma grande ameaça sempre. Como se o céu fosse desabar de uma hora para outra em sua cabeça. Drummond talvez guardou a sensação do céu de Itabira, rebaixado, próximo demais para seguir uma vida normal sem vigília. Se em Pedro Nava tudo é distensão, vôo, em Drummond, tudo é empedrado, contração.


Como biógrafo, não pôde revelar a preferência por algum livro do Drummond, assim como comentarista esportivo não abre o seu time. Entre nós, qual é sua obra favorita?

Minha escolha é convencional: Claro Enigma. Li em 1965, com estupor. Ainda estou fazendo loucuras, como a literatura, desde então. Eu não me entenderia sem Drummond.


A poesia de Drummond ajudou o sr. ou o atrapalhou com as mulheres?

Hoje me ajuda, no sentido de compreensão do conflito. A sombra de Drummond tomou minha mão. Na vida de seus versos, é constante o paradoxo, o jeito brigado, a resistência, o refluxo da consciência. Nada é conquistado sem esforço.


Drummond se deu bem com seus contemporâneos, como Manuel Bandeira e Mario de Andrade, entretanto, demonstra que a amizade e admiração tinham um limite. Ele nunca fez a reverência a nenhum outro poeta, a ponto de dizer que gostaria de ser igual?

No Brasil, não. De jeito nenhum se comparava. No estrangeiro, apreciava Paul Valéry, grande poeta de segunda na minha avaliação.


A ausência de reverência a um outro autor no seu país não demonstra ambição?

Sim, Drummond foi ambicioso, titânico, topetudo. Orgulhoso de sua poesia. Vivia na esgrima de seus versos sem folga. Quis ser o grande poeta, agia como um Prometeu, de carga visionária.


A maioria dos poetas acredita que a ambição é ruim, percebe-se o franco elogio à modéstia e ao despojamento, mas pode ser boa no sentido de orientar um trabalho mais alentado e sério?

Não há nenhum despojamento na poesia. O poeta acredita para fazer acreditar. Drummond não jogava nada fora, nenhuma parte de si, aproveitava tudo. O prazer está não em entender, mas tentar entender. A poesia é a expressão das experiências que não foram concluídas.


Fabrício Carpinejar é poeta, jornalista e escritor, autor de Caixa de Sapatos, Como no Céu/Livro de Visitas e O Amor Esquece de Começar, coletânea de crônicas (Bertrand Brasil)



CANO EM BORGES





"Carlos Drummond de Andrade, nas vezes em que esteve em Buenos Aires, sempre encontrou um jeito de se desvencilhar de um encontro com Jorge Luis Borges. Numa ocasião o encontro chegou até ser marcado pelo genro de Drummond, Manuel Graña. Havia uma expectativa quase solene com relação ao momento em que o autor de El Aleph e o de A Máquina do Mundo se vissem um diante do outro. Mas Drummond faltou ao encontro (resolveu em cima da hora não comparecer) e deixou Borges esperando num café de Buenos Aires."


(Trecho da biografia Os Sapatos de Orfeu, de José Maria Cançado)

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