quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/9/2005 10:56:35 AM

BREVIÁRIO DO MARINHEIRO POPEYE


- prefácio do livro "Fatais" (Casa Verde), coletânea de contos de Caco Belmonte, Christina Dias, Filipe Bortolini, Flávio Ilha, Laís Chaffe, Luciana Veiga, Luiz Paulo Faccioli e Marcelo Spalding. O livro será lançado no dia 22/3, a partir das 19h, no Jardim Lutzenberger da Casa de Cultura Mario Quintana (Andradas, 736, 5º andar), em Porto Alegre -


Fabrício Carpinejar





¿ O escritor reescreve os livros que amou na infância e na juventude.


¿ Não me refiro a influências. Os livros não influenciam, contaminam.


¿ Escritor bom é que coloca sua obsessão no lugar do temperamento. Obsessão é cavar o mesmo lugar o tempo todo, ao invés de cavar vários lugares em uma prova de indecisão.


¿ Reescrever é a única forma de continuar lendo o livro que se quis escrever.


¿ Sherman Anderson não faz lembrar nada, mas foi o pai da geração de autores de William Faulkner. Foi tão bem reescrito que desapareceu.


¿ Faulkner dizia que se não o entendessem com duas ou três leituras, façam a quarta.


¿ Inspiração é um outro modo de chamar o espinafre.


¿ O que estou fazendo aqui é exercitar uma obsessão.


¿ O que Caco Belmonte, Christina Dias, Filipe Bortolini, Flávio Ilha, Laís Chaffe, Luciana Veiga, Luiz Paulo Faccioli e Marcelo Spalding estão fazendo aqui é obsessão.


¿ Escolheram entre ser escritório e ser escrito. São escritos sem gavetas para se guardar. Recomendo que ponha cada uma das narrativas dentro da íris esquerda com cópia carbono na íris direita.


¿ Não são estreantes, nenhum autor é estreante, todo autor é veterano de sua solidão antes de publicar.


¿ O título do livro Fatais lembra uma vida que não tem como mudar. Uma vida que não muda é acomodação. Os contos desse livro não oferecem fatalidades, mas escolhas precipitadas de personagens, que recorrem à interiorização, brutalidade e traição.


¿ O homem só pensa que é Deus na tragédia, concluo com o livro.


¿ Caco Belmonte mostra homens decididos de maldade. Um marido frio, um empresário que pensa em descansar a qualquer custo e a rotina de um jornal no dia de demissões em três estratos sociais. Caco Belmonte tem um cigarro na mão para torturar com queimadura. Ponto alto.


¿ Christina Dias recorre aos espaços íntimos como o pátio, quarto e portão para desenhar o abandono do mundo. São famílias desagregadas, que perderam o motivo e o frescor, que mexem unicamente os movimentos da memória. Há um único problema sério, dizia Camus: o suicídio. Completaria: o suicídio do mundo, não do homem.


¿ Filipe Bortolini utiliza um enredo policial para fazer trama de interior de Estado (afinal existe suicídio culposo?), a exemplo de séries televisivas que perduram a curiosidade, e o desconsolo de um homem para fazer solidão. Entre idas e vindas da garrafa, descobre que o fundo de um copo vazio é mais luminoso do que quando cheio. "Vocês já tiveram melhores rótulos, garotas, e minha cara já foi melhor".


¿ Cinismo é um jeito autodestrutivo de generosidade.


¿ Laís Chaffe não está no livro por acaso. O que ela quer é fuçar a ferida para ver sua altura. "Chega ou não ao osso?" Chega! Oferece dois painéis sobre o amor doméstico, que parece selvagem visto de dentro. Um pai é desmoralizado pela doença e um homem não aceita levar um fora discretamente, colocando sua mulher em pânico e empregando o gato como refém.


¿ Tudo é pacato até que se conheça verdadeiramente.


¿ Flávio Ilha é uma má companhia para a verdade. Mente para a literatura com a própria literatura. Inventa autores, livros e a si mesmo com pseudônimos. Metalinguagem para sinalizar que a vaidade não faz um autor, mas bem que pode destruir.


¿ Afetação é quando não se fala nem mais o silêncio sem uma citação.


¿ Dependendo, fatalidade entre tantas opções ruins é sorte.


¿ O conto muda sua idéia ao final. Não sei se é por veleidade ou por paranóia. O conto pensa que o leitor já descobriu o desfecho, teme que a história seja pirateada no início e muda o destino de repente. Luciana Veiga segue à risca a dissimulação. Estou a seguindo de carro e zás, ela sumiu. Em A Concha, o amor proibido entre primos desaba em escatologia pouco romântica. Em Quase uma mulher fatal, um assalto aproxima desconhecidos, pondo a namorada em desespero de ciúme.


¿ Luiz Paulo Faccioli tem uma pegada humanista, de descrever as miudezas e fechar os sentimentos no microscópio até surgir bichos psicológicos letais. Conta a trama de uma doença incurável e seus reflexos na consciência e de como o corpo é capaz de adoecer sem morrer. Em Mesa de bar e O teto do mundo, acentua o nervosismo em situações-limite. O nervosismo torna qualquer um loquaz e desajeitado em seus pensamentos.


¿ A doença é uma fatalidade que se leva ou à morte ou ao amor.


¿ Marcelo Spalding entranha-se em cortes súbitos da existência, puxando os vários lados do espectador. Visão de jornalista a serviço do escritor. Violência e miséria temperam acertos de contas entre parentes. O ódio começa em casa.


¿ Todo fantasma somente faz visita de negócios.


¿ Brutus e Olívia Palito comem beterraba.


¿ Popeye é marinheiro, mas o vejo unicamente em terra firme. Somos o que não enxergamos. Isso é uma fatalidade.


¿ O futuro não redime o passado, porque o passado já é memória inventada.


¿ As narrativas desse livro têm um mesmo encanamento na dor. A água sempre encontra um lugar para sair. Ainda que derrube as paredes.

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