quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/5/2006 09:45:34 AM

Edição Nº 63- Março de 2006

Revista Continente Multicultural

Recife (PE) - versão online



LITERATURA




AS BOLHAS DE FICÇÃO DE AMILCAR BETTEGA

O vencedor do maior prêmio brasileiro de literatura vive em Paris uma nova experiência, criando uma prosa que flerta com a poesia


Por Fabrício Carpinejar


Não caiu do céu. Custou muito sangue, solidão e incertezas. Pode-se concluir precipitadamente: jovem escritor de 42 anos, completados em 14 de fevereiro, recebe o maior prêmio literário do Brasil, o Portugal Telecom, e a quantia de R$ 100 mil. Mas a juventude aqui não desmerece o gaúcho Amilcar Bettega, que penou sucessivas profissões até se firmar na literatura. Ele é a prova de que as dificuldades estimulam o talento. Sem querer ser um exemplo, torna-se um espelho para iniciantes que quebram a cara mandando originais e recebendo negativas.


Seus pais, Paulo de Macêdo, ex-pecuarista de pequeno porte, e Maria Marly, professora aposentada, são gente simples de São Gabriel, município da Campanha Central do RS, com cerca de 60 mil habitantes. Além do prato predileto, o churrasco, de preferência carne malpassada e sangrando, do lugar de nascença guarda suas imagens mais inspiradas. "Um entardecer na BR 290, nas coxilhas, ou o amanhecer no campo, no inverno, com o sol cortando a bruma", recorda.


Amílcar parte para estudar na capital e se sustentar de qualquer jeito. "Sempre senti o trabalho como uma prisão, mesmo quando ainda não pensava em escrever, sentia que ele me roubava um tempo que poderia utilizar só para mim, do jeito que quisesse - sem fazer nada, por exemplo. Mas ao mesmo tempo incorporava a pressão que a sociedade mete na gente: trabalho regular, salário fixo, de preferência um bom salário, uma profissão respeitável (Quando crescer vai ser o quê? Médico, engenheiro ou advogado?)...", lembra.


É óbvio que a coerção saiu ganhando. Vantagem inicial da estabilidade versus vocação. Formou-se em Engenharia Civil e exerceu a função de engenheiro de obras de 1987 a 1992. Durante cinco anos morou em hotéis, em via-crúcis digna de caixeiro-viajante. Passava a semana em cidades como Vera Cruz, Santa Cruz, Uruguaiana, São Borja, Santa Maria e retornava aos sábados para Porto Alegre.


Mas seu percurso rodou todas as páginas de classificados. Foi o responsável pelo setor de compras de um restaurante, deu aulas de Física e Matemática para vestibulandos e atuou discretíssimo como recepcionista noturno de hotel no Algarve, em Portugal. De 1994 a 2000, cobria a área de seguros no Banco do Brasil.


Via-oficina de Luiz Antonio Assis Brasil, laboratório literário que já completou 20 anos de sucesso na PUC, ele despertou seus fantasmas e diminuiu o isolamento. "Comecei a escrever relativamente tarde, por volta dos 26 anos. Sempre gostei de literatura, mas até lá nunca tinha pensado em escrever, muito menos para publicar. Foi num momento de crise existencial (mais do que profissional) muito grande. Eu tinha me formado, trabalhava como engenheiro, mas aquilo não tinha nada a ver comigo e com o que queria fazer. Havia um grande vazio, e eu me disse 'não posso continuar levando adiante essa farsa até o fim da vida'. De repente, eu me 'flagrei escrevendo uma história'. Foi isso mesmo. Sem premeditação, sem me dizer 'vou escrever algo', quando me dei conta eu tinha já umas 30 páginas. A partir dos meus primeiros textos, que são desse tempo, comecei a ver que eu era capaz de escrever e que escrever era uma maneira de me encarar de frente, de ser mais honesto comigo mesmo. Escrever foi e é uma maneira de tentar me entender, uma maneira de me organizar, de me dar um sentido, de preencher o meu vazio. Foi também uma maneira de encontrar minha competência, minha serventia. Como vê, é uma viagem puramente pessoal."


Atualmente, Amílcar mora em Paris. Faz pouco tempo que se mudou, depois de três anos em Orleans. O prêmio recebido pelo seu terceiro livro, Os Lados do Círculo (Companhia das Letras), em novembro, o pegou de surpresa. "Nunca espero esse tipo de coisa, para evitar a frustração, nem penso muito". O que não significa falsa modéstia. Afinal, já recebeu outras premiações como Açorianos por O Vôo do Trapezista (WS Editor, 1994) e Menção Honrosa no Prêmio Casa de las Américas de Cuba por Deixe o Quarto Como Está (Companhia das Letras, 2002). "Mas sabia que meu livro não estava lá por acaso, como todos os outros nove, aliás. Nesse sentido eu tinha a esperança legítima de ganhar."


Os Lados do Círculo havia sido premiado com bolsa pela Fundação Biblioteca Nacional, em 1997, incentivo público para ser finalizado. Garantia de edição? Não, livro pronto, esteve para sair por várias vezes, por várias editoras, mas na última hora sempre acontecia algo e a coisa dava para trás. Situação perfeita para alimentar o ranço, mas Amilcar, entretanto, suspira aliviado: "Ainda bem. Isso permitiu que eu retrabalhasse inteiramente. Foi como fazer um novo livro. Suprimi contos, inseri outros, reescrevi todos. Não tenho dúvida de que ficou bem melhor. Cada texto está escrito num registro diferente, utilizo-me de recursos de outros tipos de escritura, como o roteiro de cinema, a entrevista, o tratado de economia, a linguagem dos verbetes de dicionário, é uma das formas de dar uma unidade ao livro: pela variação".


A metamorfose é um estado permanente do ficcionista. Entre a larva e as asas. Entre o carvão e a cinza. Sua obsessão é mudar de alma enquanto o corpo é fiel. "Tento sempre não me repetir, mudar de livro para livro. O que dá graça à coisa é experimentar o que ainda não se fez. Apesar de meus livros serem coletâneas de contos, não os quero como um saco onde cabe tudo. Penso um livro sempre em conjunto, sempre dentro de uma unidade, e essa unidade normalmente passa pela forma."





Se, em Os Lados do Círculo, Porto Alegre está inteira como cenário e linguagem, agora a nova vida em novo lugar deve render uma mudança abrupta em sua ficção. Está de flerte com a poesia, a soprar bolhas de ficção. O trabalho como tradutor da Companhia das Letras e do Atelier Européen de la Traduction vem ajudando-o a reparar bem mais nas nuances do português, suas colorações escuras e recursos escusos. "Tenho escrito uns textos muito curtos, uma ou duas páginas no máximo. São textos que partem quase sempre de uma imagem, e que tentam cristalizá-la a partir de uma linguagem mais poética, uma espécie de prosa poética. Mas sempre com o pé na ficção, na história, no conto. Mesmo que no final não dê conto, a idéia é guardar certa tensão poética, criar uma espécie de 'bolha de ficção' que se desgarre da realidade cotidiana, e que paire, pelo menos por um instante, na imaginação do leitor. Mas é um projeto que está apenas no comecinho, nem sei se vai vingar. Tenho já uns 30 textos escritos, mas para fazer um livro teria que ter uns 110, 120, para poder descartar uns 20 ou 30."


Como sempre, a atitude não partiu de uma intervenção consciente, porém do instinto de adaptação, de contornar as circunstâncias inseguras fora do país de origem. "Procurei esse tipo de texto para tentar escapar do buraco negro em que me senti quando mudei para a França. Mudança de língua, ambiente, de repente me vi em meio a uma enorme cratera. Fiquei muito tempo sem escrever absolutamente nada. A saída foi tentar esses textos curtos, com uma angústia menor."


Amílcar é pacato e quase invisível. Usa roupa branca e jeans de propósito. Pouco chama atenção para si, muito menos para o que faz. Nada o tira do sério. Corrigindo, uma única afirmação o perturba. E não é provocação esportiva. Quando alguém, pela enésima vez, o imputar o rótulo de cortazariano. Ele não é de planejar a vida. Deixa rolar. Assim a vida o conduz para onde ela quer. Ao topo.


(Leia mais na edição nº 63 da Revista Continente Multicultural. Já nas bancas)



* Fabrício Carpinejar é poeta, autor de Como no Céu/ Livro de Visitas (Bertrand Brasil, 2005), entre outros.

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