quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/22/2005 02:33:40 PM

BRINQUEDOS PELA CASA

Gravura de Paul Klee


Fabrício Carpinejar





Não tomei cerveja com o meu pai. Não conversei sobre mulheres com o meu pai. Não fui ao cinema com o meu pai. Não visitamos a Expointer. O máximo de aventura que enfrentamos juntos foi quando ele estacionava em local proibido na rodoviária ao pegar os jornais e me deixava esperando no carro. Suportava a seqüência de tormentos: as buzinadas de quem vinha atrás, o pisca ligado eternamente e o pavor da multa do guardinha. Não tive nenhum papo adulto ou cabeça com ele. Ele não me indicou caminhos, não reprimiu escolhas. Não assinava meu boletim. Não autorizava minhas viagens escolares. Não me ensinou história, literatura, português. Não me explicou o sexo, a única vez que chegamos perto do assunto foi quando comentei que seria pai e já era tarde demais. Ele saiu cedo de casa (ao menos para mim), quando tinha oito anos. Não joguei futebol com meu pai e seus colegas contaram que atuava de centroavante. Queria ter jogado ao lado dele, mesmo que seja para reclamar da falta de passe. Ele escrevia muito e o escritório vivia trancado, impraticável para corridas e pega-pega entre os irmãos. Não podíamos entrar pela frente da residência. É óbvio que arrumava uma escada para espiar o que ele anotava pela janela. É óbvio que não enxergava nada de diferente.


Quando caminhava pela calçada, meu pai andava com as mãos atrás. Como é sábio andar com as mãos atrás! Tudo o que falam delem, eu paro para escutar como quem necessita reconstituir a vida que não teve. Amigos, inimigos, amores e desamores. Ouço qualquer história dele com ardor e paciência. Compraria histórias e palavras de meu pai. Meu pai é uma agenda que não foi usada. Por isso, não reclamo quando recolho os brinquedos de meus filhos pelos corredores. A maioria xinga a bagunça, não eu. Eu me alegro. Posso estar cansado, acabado, sem reservas e arrecadarei um por um dos brinquedos com dedicação. É noite alta, vou recolhendo os destroços e colocando os bonecos na prateleira. Faço um altar, distribuindo os anjos de madeira, de palha e de pano nos degraus das arquibancadas. Dobro as roupas nas gavetas. Organizo os carrinhos, sou capaz de escutar as vozes dos livros, esbarro em algum brinquedo eletrônico que quase acorda a vizinhança. Às vezes me perco em admiração pelos filhos. Entro em um transe, acionado por uma expressão nova, um fraseado diferente, uma pergunta esperta. Permaneço quietinho diante deles, mexo seus cabelos, como que colorindo desenhos dentro dos traços. Eles pensam que estou distraído. Ah se soubessem que presto atenção, tanta atenção que me disperso de mim. Só neles. Ausente enfim de mim.

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