quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/21/2006 06:52:51 PM

NÃO HÁ COMO VOLTAR ATRÁS,

MUITO MENOS IR PARA FRENTE


Pintura de Amedeo Modigliani


Fabrício Carpinejar






Nada mais vai nos interromper. Os telefones, os gritos da rua, as visitas batendo na porta. Nada mais vai nos interromper. O terror de dizer, o terror de não dizer. Nada mais vai nos interromper. Minha ausência de culpa, seu excesso de culpa. Nada mais vai nos interromper. Sua pressa em fugir, minha pressa em entrar, o fingimento que não é conosco. Nada mais vai nos interromper. As conversas dos amigos, os dialetos de vidro, os desvios da cintura. Nada mais vai nos interromper. Os conselhos da família, seu casamento, as reuniões de trabalho. Nada mais vai nos interromper. Seus gatos, meus cachorros, os pássaros que morreram no domingo. Nada mais vai nos interromper. Pode esconder os lábios, que eu dou a volta no quarteirão. Nada mais vai nos interromper. Sua timidez, minha coragem, as esmolas dos pombos. Nada mais vai nos interromper. Pode envelhecer, que eu cedo meu lugar, cedo minha vida pelo teu lugar. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que seja a hora, mesmo que não seja a hora, mesmo que a gente tenha nascido para ficar longe. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que seja uma relação proibida, um contrabando, saudade usada. Nada mais vai nos interromper. Haverá unhas, haverá pele, haverá um jeito de escrever escondido e marcar um encontro. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que tenha que voltar ao início da fila. Nada mais vai nos interromper. As crianças, o trânsito, a falta de convicção. Nada mais vai nos interromper. Estamos tão rentes que recuar é ainda se tocar. Nada mais vai nos interromper. Sua respiração é como uma palavra indecisa. Nada mais vai nos interromper. A escama das lâmpadas, o gorjeio sofrido das árvores, a esperança da mentira. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que a gente desista, a gente se cale, a gente deixe de comparecer. Nada mais vai nos interromper. O orgulho, o preconceito, o capricho das roupas separadas. Nada mais vai nos interromper. Errar a música de ouvido, o instinto de se preservar, o arrependimento. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que um só ajude o outro a se perder. Nada mais vai nos interromper. Estar a favor de Deus, estar contra Deus, ajoelhar-se como um barco a seco. Nada mais vai nos interromper. Nossa falta de grana, os telhados das igrejas, o vestido branco. Nada mais vai nos interromper. Os despojos do dilúvio, os talheres tortos, os sapatos tontos na janela. Nada mais vai nos interromper. Pecar distrações, pescar desaforos, penhorar os anéis. Nada mais vai nos interromper. Contar segredos, guardar segredos, o degredo. Nada mais vai nos interromper. Seu corpo é meu corpo regressando. Nada mais vai nos interromper. Seu corpo é meu corpo partindo. Nada mais vai nos interromper. A leveza que some antes de entender, a letra que germina antes de rastejar, a crueldade da infância. Nada mais vai nos interromper. O desequilíbrio, o sarcasmo, a ânsia de fechar o livro. Nada mais vai nos interromper. As casas mal-assombradas, os barulhos dos becos, as bicicletas acorrentadas. Nada mais vai nos interromper. As cadeiras sobre a mesa, a denúncia, a fofoca. Nada mais vai nos interromper. Se é certo fazer, se é errado fazer, se é justo acreditar. Nada mais vai nos interromper. A educação, o sentido, o semáforo. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que não tenhamos provas de que houve alguma coisa, mesmo que o vento seja insinuação de chuva, mesmo que as pálpebras da água não substituam as nossas. Nada mais vai nos interromper. Mesmo que seja aconselhável a amizade, mesmo que seja aconselhável esquecer, mesmo que seja aconselhável não mudar. Nada mais vai nos interromper. Nem a nossa própria resistência em aceitar que seremos para sempre esquisitos depois de nosso amor.

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