quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

3/12/2006 06:54:09 PM

EX-TÍMIDO?

Pintura de Peter Blake


Fabrício Carpinejar





Eu sou tímido. Não, fui tímido. Não sei como alguém pode deixar de ser. Mas já posso me considerar um ex-tímido, desde que exclua o aniversário, momento em que a retração volta com a intensidade da infância. É um disparate um tímido dizer que é tímido. Quem realmente é tímido tem vergonha de contar. Não considera a característica uma virtude, mas um defeito. A maioria confessa que é tímido por charme, a sinalizar reserva e pudor. Timidez mesmo dói e faz doer. É uma solidão inteligente.


Na minha infância, eu falava errado, com graves problemas de dicção. Trocava o erre pelo l. Ainda sofro efeitos colaterais do período. Não consigo dizer palavras com f e l juntos. Não aceito o casamento do f e do l, vivo tentando separá-los. Vou buscar um substituto. O fato de falar errado ampliou minha cultura. Procurei sinônimos para substituir vocábulos suicidas. O dicionário foi meu confidente. Eu deveria ter terminado a fonoaudiologia. Quando descobri que minha fonoaudióloga era casada, não me recuperei da decepção amorosa. Eu a amava verdadeiramente, ainda que tivesse somente oito anos.


A dificuldade de expressão e a fealdade me inspiraram à prática da timidez. Ficava vermelho quando era elogiado ou criticado. Ao ouvir meu nome numa conversa, tinha a intenção de sair correndo. Como não ser tímido sendo chamado de Frankenstein, Drácula, Jason e Freddy Krueger? Eu era todas as fantasias do Dia das Bruxas.


Com as paixões, redigia cartas de amor antes de iniciar a aproximação. É óbvio que não me declarava, nunca me declarei. O tímido não se declara, se denuncia.


O tímido goza de uma vantagem: ele ensaia seus atos com antecedência. Testa várias possibilidades de abordagem para escolher uma. Ele ouve com mais atenção do que um expansivo, que sai falando pelos cotovelos e não dá chance. O tímido planeja as atitudes com receio do fiasco. Ao mesmo tempo, ele terá humildade para aceitar opiniões diferentes da sua. O sofrimento ensina a autocrítica. O tímido tem um humor refinado, não vai provocar a gargalhada fácil, mas é um perito da ironia e do sarcasmo. Guarda um humor desesperado e caseiro.


O tímido pensa que vai incomodar, e não fala. Pensa que vai atrapalhar, e recua. O tímido conspira contra seu nascimento. Ele deseja a invisibilidade, mas odeia ser desprezado. O tímido ama por constrangimentos. O tímido pensa na hora, entretanto, a tremenda negociação consigo o atrasa.


Eu enfrento minha timidez porque criei um personagem para falar em meu lugar. Este personagem é o escritor. Um amigo imaginário, dublê nas situações de perigo de linguagem. Assim como o gago muda a voz e engana a gagueira, brinco de ser outro. Uso um timbre diferente em público. Logo ataco para não me defender. Quando jogo na retranca, levo goleada.


Meu único zagueiro hoje em dia é o goleiro.

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