quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

2/6/2005 09:42:00 AM

O LÁPIS E O LAPSO

Gravura de Paul Klee


Fabrício Carpinejar





Quando esquecia o nome de um cineasta, de um filme, de uma atriz, de uma praça, de uma rua, de um autor, de um livro, tornava-me obcecado em descobri-los no ato. Forçava a nuca, parava de conversar, entrava em um transe respiratório a recolher o destroço. Não admitia um minuto de silêncio, porque o morto era eu. Uma palavra fora do contexto e o teto deixava de ser seguro. Algo que não mudaria o sentido do todo trancava a estrada. Lançava-me pelo mar para salvar a bóia, ao invés de receber a bóia para me salvar. Chegava a ser mal-educado com quem estava comigo, apenas para me livrar dessa idéia fixa. "Como é mesmo o nome?" "Eu já vou me lembrar..." O tormento me anulava, me comprimia a boca. Se fosse preciso, ligava na hora para a mãe ou algum conhecido que entenderia o que estava falando, sem me taxar de louco. Passei por situações constrangedoras pelos lapsos. O vexame não vinha dos lapsos, mas do modo como reagia a eles. Como se fosse necessário ter uma continuidade lógica ao pensamento. Como se fosse necessário ser uma enciclopédia para ter o que dizer e acumular sinônimos e verbetes. A cultura não pode ser maior do que o esquecimento. Minha lembrança não é mais a mesma, é bem mais exigente, com autonomia para apagar ou ressuscitar quem quer que seja. Não pede mais minha autorização e assinatura - sou um acionista minoritário do que vivi. Não quero acordar como um mendigo pedindo moedas para a memória. Quero esquecer sem sofrer. Não entrar em desespero, porque o desespero é que não me faz lembrar. O desespero muda o sentimento da recordação. Com a emoção alterada, não encontro a informação, o dado, o ano, o paradeiro, o termo. A evocação, como os dedos, depende da humildade da água, andar alturas devagar. Senão afundará como a pedra, que é mais profunda parada do que qualquer profundidade andando. Antes memorizava versos com a facilidade de um assobio. Um moedor de chilreios. Hoje não guardo nada de cor, muito menos o que anotei. Um dia tive que gravar um de meus poemas para um DVD e esqueci da última linha. A câmera me olhava com morbidez e a última linha havia embranquecido, como fax depois de um ano, fotos polaroid depois de um ano. Acho que a memória já exige óculos, tive que fechar os olhos e me aproximar do passado com o astigmatismo evocativo. Não consegui. Inventei outro verso no sufoco, com alívio de cancelar um compromisso e colocar outra pessoa em meu lugar. Não foi criatividade, foi sobrevivência. Não posso usar minha memória, ela me carrega. Tudo o que escrevo diminui o lápis. Não me importo de deslembrar, os restos de um rio ainda são margens. O que não alcanço me leva.

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