quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

2/3/2005 09:53:10 PM

O GAGO

Gravura de Sérgio Godoy


Fabrício Carpinejar





O gago engole a seco a palavra, a aspirina da palavra. O gago odeia que alguém termine uma frase por ele. Não é ansioso, não é nervoso, é violentamente calmo. O gago não precisa de ajuda, precisa de tempo. Não é o gago que tarda, é o ouvido que se apressa a ir embora. O gago sofre porque todos falam rápido o que não pensam. O gago pensa rápido o que não fala. O gago se desculpa por aquilo que não disse. O gago tem tudo a perder e abre a boca para empatar. O gago daria sua garganta para a ave e ela cantaria melhor do que a própria árvore. O gago não quer seu pai dizendo fala, sua mãe dizendo fala, sua namorada dizendo fala. O gago despreza sinais, sua pronúncia volta enquanto vai. O gago negocia o preço de cada palavra, administra o recuo de cada letra, recupera o desejo de cada som. O gago não promete fiado, paga adiantado. O gago tem uma asma sem cura, uma tosse sem fim. O gago não boceja, tem a insônia dos lábios. O gago joga cartas e espera para abrir. O gago sussurra para chamar. O gago quando grita não tem nada a pedir. O gago vive uma timidez involuntária. O gago soletra o nome das coisas como se fosse um sobrenome estrangeiro. O gago nada no idioma no inverno. O gago ama em versículos. O gago ajeita a direção do rosto no espelho. O gago tem ânsias de calar o que não completou. O gago enxerga o mundo por dentro e entende o mundo por fora. O gago é um cego sem ombros. O gago vive seu segredo como se fosse mudar um dia, como se o dia fosse mudar por ele. O gago não fala em público, o gago é seu público. O gago não convence, o gago se comove. O gago espicha seus dentes a recolher a caneta do chão. O gago é um aluno exemplar desde que seja esquecido. O gago tem muitos em si e não chega a um acordo. O gago se despede breve como quem cumprimenta um estranho. O gago se sucede a todo instante. O gago corta a conversa, o cabelo, e espera que eles cresçam de novo. O gago tira fotografias do sopro. O gago acaricia o vazio e treme debaixo da luz. O gago faz sombra aos olhos. O gago sobra no ar enquanto o ar é ralo. Sobra no tom enquanto o ar é raso. O gago não desperdiça, puxa os farelos da mesa com a concha das mãos. O gago chove do lado contrário. O gago respira como quem beija. O gago é seu respeito pelo atraso dos outros.

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