quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

2/24/2005 02:31:51 PM

MANCHAS


Fabrício Carpinejar





Não sou de esfregar manchas com vinagre e sal. Ficar esbaforido com uma toalha tentando reparar o estrago ou estender o pano na pia como um alucinado procurando a aliança no ralo ou me banhar de talco como um bebê. Minha memória é feita de manchas. A que eu mais admirava era a do fundo do estojo do lápis de cor. Não queria trocar a caixinha de madeira. Iniciava o ano letivo e riscava o estojo da lista de material escolar. Fazia beiço. O fundo tinha a graça do risco involuntário, emaranhado de cores que buscavam cada uma a sua maneira gritar mais alto. A paleta resplandecia intensa, úmida, pintura na rocha. O estojo fazia barulho com a tampa. O barulho me acordava para a aula. Outra mancha que me tranqüiliza é a do vinho na toalha da mesa. Meu pai bebia um cálice e não havia jeito da toalha passar imune à borra na janta. A mancha do vinho significava a hora de dormir. O círculo vermelho no linho me anoitecia, um relógio de pano. Sempre fui de me sujar, de me espalhar, de pular cercas de arame farpado e muros. Raramente voltava para casa com os joelhos lisos. Respondia ao apelo do chão e curava as varizes das árvores. Subia descalço para não escorregar. Que delícia farejar as pontas dos troncos com os pés. Preparei minha tez com a rapidez do mato. Roubava frutas usando a camisa como cesta, que terminava pigmentada de ameixas, bergamotas e amoras. Fazia estampas sem querer. Chegou um momento em que a mãe desistiu de limpar e aceitou a volúpia da imaginação das frutas, do suor das frutas, do suco silvestre. Limitou-se a avisar que não tinha conserto. As manchas me davam a nobreza de ter vivido e me arriscado. Não mudo o que de ruim aconteceu em minha vida. Não adapto a história de acordo com as intenções. Mudo de idéia, mas não de passado. Não sou de me remoer em resignações. Já escutei muito de amigos: "se eu pudesse apagar o que eu fiz?" Se apagasse o que não concordo, o que colocaria no lugar? Eu seria mais espaço à venda do que habitado. Arrepender-se do que foi feito não é apagar, mas aceitar a contradição, a oposição, a experiência negativa dentro da gente. Admitir que o divórcio, a separação, o fim do namoro ajudam nas novas relações. Não há culpa onde houve vontade de acertar. Se errei, é que o erro também precisava de mim. Não conheço alegria que não deixa sinais. As manchas indicam que exagerei para o bem e para o mal. Todo excesso é amor. Não sou de esfregar o passado na cara do outro. As manchas são minhas, intransferíveis, e o vinagre não combina com a pele.

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