quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

2/22/2005 10:13:39 AM

SEVERINO E O PODER


Fabrício Carpinejar/ Jornalista e poeta


Não se ouvia falar de Severino Cavalcanti, azarão na disputa à presidência da Câmara Federal. Era mais um Severino entre "muitos iguais em tudo na vida", tomando emprestado verso de João Cabral, em Morte e Vida Severina (1954-1955). Superou a pobreza, largou os estudos e encontrou na política sua tábua de salvação, como antes se entrava na Igreja e no Exército para ter um prato de comida. Até o momento da eleição, representava mais um Severino entre tantos no Congresso, a declarar discriminação sem medo de represália. Fazia parte do baixo clero, que decidia sem aparecer. Deixou de ser Severino, de uma noite para outra, para ser presidente dos parlamentares em surpreendente votação. Aproveitou a divisão do partido governista, indeciso entre dois candidatos petistas. Sua estratégia foi simples: defendeu o corporativismo dos 513 parlamentares. Prometeu aumentar o salário atual de R$ 12,8 mil (afora R$ 48 mil de ajuda de custo) para quase o dobro, o equivalente a R$ 21,5 mil. A votação secreta apenas o ajudou, já que nunca saberemos o que de ruim um homem pode realizar em segredo. E não faltou com a palavra. Ratificou o aumento na primeira aparição pública como presidente da Casa. Foi natural e espontâneo como se estivesse escovando os dentes. Convicto, parecia que Deus falava a ele através de um ponto eletrônico. Tornou-se porta-voz do seu contracheque, acreditando que o eleitorado apoiaria a iniciativa descabida de equiparação dos seus vencimentos ao de ministro do Supremo Tribunal Federal.


É assustador perceber a falta de pudor de seus princípios. Avisa que não haverá mais baixo clero, e sim a igualdade entre os deputados. Pelo jeito, igualdade entre os deputados não é converter todos ao baixo clero, mas alçar todos ao alto clero com aumento abusivo. Outra de suas afirmações é defender a família. A sua família, assim entendo, de deputados e cabos eleitorais. Nunca o eleitor, esse parente distante. Nem menciono seu preconceito contra homossexuais, abortos em casos de estupro e iras pouco santas, que o desqualificam como isento.


João Cabral, grande poeta pernambucano, não poderia prever que o nome de um dos seus personagens, escrito em protesto ao alto índice de mortalidade em Pernambuco (nos anos 50 era maior do que a Índia), e casualmente conterrâneo chegaria ao poder com a desfaçatez de legislar em causa própria. Se nos versos de Cabral, Severino morria "de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por dia", hoje morre de uma doença ainda mais letal e silenciosa: a politicagem.


(artigo publicado no jornal Zero Hora, 22/02/05, Porto Alegre/RS)

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