quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

2/19/2006 03:49:53 PM

O MEDO DA INVASÃO E DA EVASÃO


Fabrício Carpinejar

Depoimento ao jornal Rascunho, edição de janeiro





Raduan Nassar conjuga dois livros em um. Uma inversão: da costela de Eva (ou Ana, pivô da disputa entre pai e irmão em Lavoura arcaica), nasce Adão. Um copo de cólera começa com "A Chegada" e termina com "A Chegada", e toda a ira do chacareiro com as formigas em sua plantação soa como se não tivesse existido. Foi um rompante? Um surto? Uma alucinação? O terror lançado em direção ao formigueiro é a projeção da ineficácia do personagem em dominar a própria ordem, e seu ódio envolve a mulher em uma briga corporal, verbal e de nervos. É o receio do elemento imprevisível que desarticula a família. Lavoura arcaica, seu primeiro livro, tem seu início marcado pela "Partida". Gênesis e Apocalipse irmanados. Depois da chegada de Um copo de cólera, vem a partida de Lavoura arcaica. Se um oferece o medo da invasão, o segundo explora o medo da evasão, que os segredos de família, proibidos e ilícitos, possam se tornar públicos com a saída de André, jovem do meio rural arcaico que resolve abandonar sua numerosa família do interior para ir morar em uma outra cidade e acaba resgatado de volta. Ambos tematizam a disciplina. A autoridade que logo perde a espontaneidade quando posta à prova e se transforma em descalabro e autoritarismo. No fundo, as palavras não bastam para disfarçar a segurança. No fundo, a palavra é lodo e pântano, cal e deserto.


Raduan conceitua o desequilíbrio, o controle aparente que existe na estrutura familiar e que coagula quando se conhecem mais fundo as relações. A loucura é toda subjetiva em Lavoura arcaica, feita de insinuações, de pistas e de indiretas, tal o acesso de ódio de Um copo de cólera. A submissão dos filhos com o pai, o incesto entre irmãos, o castigo de uma fé menor do que a sedução, as mortes que não saram como nas tragédias gregas, que apenas prolongam o impasse da vida consumida e ainda inexplicada. O autor circula entre o tom bíblico e as dúvidas apócrifas, mandingas e superstições, crenças e promessas, ameaças e castigos, não há separação da fala do pensamento, mundo ancestral de perguntas feitas para não gerar respostas, mas enigmas. A linguagem poética atua para corromper o tempo da narrativa e bipartir a memória em dois atos: o que foi e o que se imaginou ter vivido. Os mesmos bichos: as moscas em Lavoura arcaica perderam as asas e se transformaram em formigas em Um copo de cólera.


Sobre o autor

Fabrício Carpinejar é poeta. Autor de Como no céu/Livro de visitas, entre outros. Mora em São Leopoldo (RS).

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