quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

1/26/2006 11:14:24 PM

PANO DE PRATO


Fabrício Carpinejar





Estava secando a louça com a mesma distração de quem dirige e, de repente, passo a conferir o calendário no pano de prato. Era de 1995, o ano em que iniciei com a Ana. O curioso é que 1995 e 2006 são praticamente iguais. Estou reprisando o ano em que me encontrei com ela.


Nunca contei aqui como a conheci. Trabalhávamos em cobertura política. Eu do lado da assessoria e ela do jornal. Tamanha a euforia, chegou um momento em que deixamos de prestar atenção na sessão de vereadores. Vivíamos trocando bilhetes, com perguntas cada vez mais ousadas. Pedaços de papel e guardanapos foram o nosso Messenger.


Tinha me separado recentemente e ainda estava com reservas e cautela. Perdi todos os dispositivos de defesa com a sua capacidade de dizer tudo arqueando as sobrancelhas. Suas sobrancelhas usavam meia 7/8. Eu escorregava o olhar para debaixo da mesa. Nossa primeira saída aconteceu com um casal de amigos. Depois do restaurante, terminamos em uma boate fuleira. O cenário ideal para não começar nenhuma relação. As garçonetes circulavam com minissaia mínima, cheias de brilho e lantejoula. O primeiro beijo foi feito com as pálpebras, macios como as pálpebras. Inspirei meu próprio ar e gostei quando vinha de sua boca. Não findava e nem findou. O mundo sumiu ao derredor. Descobrimos depois que o casal de amigos brigou feio (em função de uma das garçonetes) e foi embora. Não souberam como nos interromper para avisar.


No dia seguinte, Ana estava de tubinho branco. Era verão. Os dois com medo de falar e de confirmar as expectativas. Eu queria namorar, mas meu pé estava indeciso entre ir e voltar. Quando se ama, mistura-se a pressa com a ânsia. Tomei coragem de marcar um novo encontro. Caprichei. Havia recebido meu FGTS do último emprego (demitido, claro) e reservei por uma semana o quarto 502 do Hotel Everest, defronte à minha paisagem favorita de Porto Alegre, o Viaduto da Borges de Medeiros. O curioso é que morei em um hotel na minha própria cidade. Íamos em restaurantes, em teatro e cinema, largamos praticamente a rotina. A felicidade quase me matou de susto.


Eu cheirava a seus cabelos de dia e de noite. O sexo tinha a claridade das cortinas. Minhas mãos dedilhavam o piano de suas mãos. As teclas brancas e as unhas negras. Um dependia do outro, como se não houvesse crime nos jornais. Nas andanças, queimei meu melhor casaco com o isqueiro e nem lamentei. Ria com a facilidade de um grampeador. Fali e achava graça. Meus bolsos para fora como a língua de um cachorro com sede. Nunca estive tão pleno. Podia mudar de religião para entender Deus ou mudar de Deus para encurtar a reza.


No domingo, depois de ter gasto o que eu não recebia, disse que a única alternativa era morar junto. Ela aceitou, com uma convicção que só existe na infância. Procuramos apartamento e entramos no primeiro que visitamos. Número 205, o inverso do quarto do hotel. Concordamos com a coincidência. Ambos enlouquecidos, como deve ser a saliva, compramos um colchão, duas alianças e um par de copos, pratos e talheres. Não precisei decorar seu telefone para ligar, não a deixei sair de perto de mim.


Nossa primeira janta no novo endereço foi no chão. Eu comi com as pernas cruzadas, mas é certo que já estava ajoelhado para sua nudez. Eu beijei suas costas como se fossem seios. Eu beijei seus pés como se fossem braços. E segurei seus traços com uma força que unicamente a delicadeza encontra. Eu desenhei seu rosto num pedaço de cartolina para não perder nada e fixei como um quadro na parede. As cores e os filhos entraram nas linhas vazadas.


E pensar que em uma semana tomei a decisão de dez anos. E pensar que seco hoje com um pano de prato de 1995 justamente o copo e o prato da primeira vez.

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