quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

12/24/2004 08:06:34 AM

SEQÜESTRO DO MENINO JESUS

Gravura "A Adoração dos Reis", de Jan Gossaert (1502-1532)


Fabrício Carpinejar





Montar o presépio era certo em minha casa, mais certo do que as luzinhas e a própria árvore de Natal. Arrumava um espelho para imitar o lago, juntava barba-de-bode e palha para tramar o estábulo, ajeitava as personagens bíblicas por ordem de chegada. A lareira virava um teatro de marionetes e sombras, com um anjo da guarda em seu pórtico e uma estrela piscando como alarme de carro. Violetas entravam nesse mundo da lupa transformadas em gigantescas árvores, com platéia de figurantes pendurada nos galhos. Nem significava religião, mas ritual, costume familiar, herança da mãe. O Menino Jesus não aparecia, recolhido até seu nascimento. Ficava escondido nos mais diversos lugares para evitar a curiosidade insaciável dos filhos. Teve um momento em que esqueci onde o havia colocado. Guardei tão bem que guardei de mim. Bateu pânico no dia 24. Estávamos cantando as músicas folclóricas, de mãos dadas e com aquela sensação mais de final de ano do que de começo de vida e nada de me lembrar do paradeiro do Menino Jesus. Não o encontrei. Não sei se as crianças acharam antes, o quebraram sem querer e, envergonhadas, não contaram ou se sofri um bloqueio religioso. Foi o primeiro caso de seqüestro do Menino Jesus que tomei conhecimento. Fui obrigado a desfalcar um playmobil de uma coleção de bombeiros e o deitar às pressas na manjedoura. Tirei sua capa vermelha e ele entrou no bafo dos bichos, sem ensaio, currículo e entrevista, embalado ao som das nozes e da reverência das velas. Fez o maior sucesso, mas confundi a cabeça dos filhotes, que pensam que Menino Jesus é - na verdade - um playmobil. Ou que o Messias é uma surpresa do kinder ovo. A minha atitude abriu definitivamente as fronteiras de Belém. Desde essa data, bonecos das mais diferentes linhagens, com a única exigência de serem miniaturas, como bichos do zoológico, guerreiros estelares e barbies entram com passaporte falso pelas mãos dos filhos no presépio. Já vi inclusive dragão e pokémon na frente dos reis magos. Dinossauros coexistem com vacas e burricos no mesmo espaço. Coitado de Darwin! Os brinquedos passaram a seguir Jesus Cristo, convertidos e natalinos em suas obrigações. A migração doméstica não permite um vazio sequer entre as figuras. O que era para ser um modesto celeiro termina em hotel de lotação esgotada, num Fórum Social Mundial. Em todo Natal, revivo esse tumulto dos filhos em esvaziar as prateleiras dos quartos e encher a sala com badulaques diminutos e representantes dos partidos da infância, do PSTU ao PFL. Não censuro, não proíbo a entrada de ninguém. É Natal afinal, época em que volta com força a esperança de que vou reaver o pequeno iluminado e vingar o esquecimento. A esperança de recuperar algo perdido me faz arrumar o presépio como se fosse meu primeiro.


(Crônica publicada no jornal Zero Hora, caderno Cultura, 24 e 25/12/04)

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