quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

12/23/2004 08:17:39 AM

SESTA, NATAL E GALINHA RECHEADA

Gravura de Portinari


Fabrício Carpinejar





Minha audição é preto-e-branco. Não me recordo de nenhum som colorido. Escuto longe mais do que perto. Escuto o que não quiseram me contar. Refaço o passado com perfeição patológica. Quando não se pode declarar a verdade, ensina-se o corpo a mentir. Me conheço por ouvir dizer, o que não é ruim nem bom. O que fui terminou sendo distração de minha parte. Juro que não busquei existir. Se algo permaneceu de mim foi involuntário. Sorte de veterano. O erro acerta, o que não faz dele um acerto. É apenas um erro menos errado. Descobri que a pressa me torna mais estúpido. Tento ser lento para não me mostrar estúpido de cara. Continuo estúpido, a diferença é que demoro a me entregar.


Como a cabeça do fósforo, sou uma escultura autodestrutiva. Posso ser diversos na alegria, mas serei sempre o mesmo na tristeza. Na alegria, pulo, disfarço, faço mímica e imito. Na tristeza, retorno à caixa d'água em cima do telhado, onde me escondia das humilhações. No Natal, esforço-me para ser uma árvore luminosa. O Natal é o carnaval dos suicidas. Até os anjos correm riscos de enjoar da imortalidade. Concentro-me para não me dizimar: entoar as músicas em ritmo de canto gregoriano, distribuir gentilezas, sortear amigo secreto porque o amigo tem vergonha de aparecer, fingir remorso no abraço. Fingir é fugir pela porta da frente. Na escolinha, recebíamos um chapéu com várias opções de presente da Estrela. A tia dizia que poderíamos pedir ao Papai Noel uma das opções da fábrica. Isso que estávamos falando de carrinhos com controle remoto, bonecos motorizados, coisas que não são para qualquer quarto. Escolhia um e colava no cone para mostrar aos familiares. Carregava o chapéu de papelão por duas semanas. Desfilava como o bobo da corte, minha ansiedade exposta no álbum aéreo de figurinhas. Orgulhava-me de ter esperanças, porém pedir não é ganhar. A escola criou uma geração de frustrados. Eu, pelo menos, não recebia nada do que desejava. A mãe divorciada não desfrutava de condições de adquirir geringonças barulhentas aos seus três meninos e uma menina. Queimava o chapéu na churrasqueira para não queimar a escola. A criança cresce pela propaganda enganosa. Todos os comerciais mostravam helicópteros em vôos rasantes e bonecos que atiravam e pulavam precipícios. Na hora de conferir como funcionavam os presentes nada funcionava. Helicópteros não voavam, bonecos não pulavam: brinquedos manuais. Os pais pagavam pela imaginação de seus filhos.


Natal e Ano Novo são datas em que tudo irrita. Se o telefone não toca, se o telefone toca. Ser lembrado é ser esquecido. Ser esquecido é ser lembrado. O único par de sapatos que sobrou foi aquele pintado de cinza brilhante, dos meus cinco anos, que o maternal transformava em adereço. Um par de sapatos com cor mortuária, encomenda de enterro. Odiava também a sesta. Sesta obrigatória depois do almoço. Quem inventou esse hábito? A mãe fechava a porta do quarto às 13h30. Eu e os manos socados no escuro de repente com um sol farfalhando lá fora. Um contra-senso. Perdíamos assim a sessão da tarde e a Lassie escapando dos donos autoritários. Quietos por dez minutos a controlar a desaparição dos passos maternos. Com a distância assegurada, começava a guerra de travesseiros e concursos de adivinhação. Os amuletos de cada um se completavam: portava um rádio de pilha, Miguel uma lanterna e o Rodrigo a bola, instrumentos necessários para enganar o escuro do castigo. Fugíamos várias vezes pela janela em planejamentos treinado, colocando cobertas amontoadas em nossos lugares. Chegamos ao despudor de recorrer a um gravador para imitar alguns roncos durante nossa ausência. Jogávamos futebol no campinho e voltávamos todos fedidos para debaixo dos lençóis, agradecendo à mãe pelas horas de sono. Ela nunca entendeu como seus guris suavam tanto ao dormir. Colocou um ventilador e não mudou muito a situação. As camas exibiam barro no lado dos pés. A sesta foi a responsável por gerar dupla personalidade. Desde criança, saio do meu corpo com a maior facilidade enquanto descanso. Costumo levar o corpo junto para não me sentir solitário. Meu corpo é meu irmão mais velho. Minhas roupas nunca se preocuparam em ter um corpo - por compaixão, me acostumei em dar carona. Dormir na infância era perder tempo. É estranho pensar que atualmente só quero dormir. Dormir hoje é ganhar tempo. O que não dormi na infância pretendo dormir na vida adulta. Saudades do que não aconteceu. Do recheio da galinha que a avó preparava, do armazém que vendia fiado e da geada que cruzava as pernas da estrada. Por favor, não me acordem com os fogos de artifício.


(coluna no Rascunho, dezembro de 2004)

Nenhum comentário:

Postar um comentário