quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

12/15/2004 09:20:59 AM

CORRESPONDÊNCIAS TROCADAS

Gravura de Magritte


Fabrício Carpinejar





Eu abro as cartas correndo. Não leio o destinatário ou o remetente. Abro com a voracidade de quem se espera no papel. Carta é o quarto da letra, ainda que seja uma cobrança ou pedido de doação. Carta tem inclinação, cola, cuspe, como um brinquedo antigo de criança. Pode ser comparada em nobreza a uma pipa ou a um pião, ao artesanato das pequenas gentilezas e vôos. Toda a carta é um origami, com uma dobradura de presente. Embrulha-se a respiração, sem borrar a tinta. Rasgo as cartas como quem se invade, se busca, se derrama. O problema é quando recebo correspondências trocadas. O dilema me apavora. Em um momento, abri uma conta de um vizinho. Não havia como reparar que não era minha pela folha padronizada. Festejei que o aluguel do box havia diminuído. Vibrei até ler o nome do titular do aluguel. Surgiu o primeiro impasse. Violei a carta alheia e, o pior, notei que pagava bem mais há dois anos por uma garagem enquanto o vizinho, pelo mesmíssimo espaço, pagava a metade. Havia sido enganado. Liguei para a imobiliária e cobrei a diferença, usando o Procon como Deus na terra e fiador no céu. Consegui diminuir o valor, mas teria que devolver a carta. Como? Não tinha condições de me denunciar, dizer que usei o vizinho como exemplo. Cheiraria a um ato planejado. Sei que é ridículo, mas decidi fechar a carta novamente, inclusive restituindo a folha pontilhada. Foi um trabalho de restauração de uma hora, com pinça e meticulosidade de falsificador. A segunda parte consistia em devolver com discrição. Fiz de madrugada. Acordei às 2h para desconfiança de minha mulher, desci com a justificativa abobada de levar o lixo (oito horas atrasado) e voltei para dormir em paz. É evidente que minha mulher perguntou por uma semana o que aconteceu comigo aquela noite. Hoje ela ficará sabendo.


A educação é capaz de me tornar subitamente um desesperado. Nem louco consegue manter sua aparência insana por todo o dia. Quando esquecia de fazer um tema na escola, minha vontade era tomar um atalho e não aparecer. O medo de ser repreendido era maior do que a reação das mãos. Quando fui ridicularizado por um amigo que baixou minhas calças na frente de uma menina deixei de sair para o recreio durante um mês inteiro. O medo de ser identificado era maior do que a nudez do rosto. Na última semana, recebi uma longa carta, li com vagar no trem e não me lembrava quem era o remetente. Acreditei que fosse natural me esquecer, já que fico amnésico ao final do ano. Até a minha memória precisa de férias. Só que o depoimento me comprometia, me colocava em lugares que não estive, dizia que fiz coisas que sequer cogitava. Era uma declaração amorosa, torrencial e febril, em letra miúda. Notei que a mulher havia economizado espaço e preenchido a folha mais do que as linhas permitem. Fiquei orgulhoso, envaidecido. Gosto do jeito que os animais bebem. Cão, gato e cachorro bebem com barulho. Suas sedes têm barulho. Diferente da gente, educado a beber silenciosamente, reprimir o som da boca e da garganta, não mostrar o que se sente. Aquela carta tinha barulho de sede. Chorei involuntariamente. Espumava uma vivência com tal intensidade que eu assobiei para disfarçar os olhos. As margens se deslocavam em violenta caligrafia, puxando o corpo para trás, para frente, de modo incansável, dando sentido para as falhas, os erros de português, para a pressa de acabar com o frio. Depois do impacto, revisei o destino e descobri que não era para mim. Outro erro da caixa de apartamento.


Agora estou com a carta aqui em minha mesa, não há como devolver, é um assunto muito pessoal. Eu li e vou transparecer isso ao baixar a cabeça na hora de entregar ao seu verdadeiro dono. Não sou pomba ou carteiro, elementos neutros. O envelope está estropiado, rasgado, pouco amigável, pronto para uma ensandecida reclamação na agência. Como reaver a pele? Espalhei comida no chão e pisei em cima. Como justificar que não li o nome do destino? Sempre que digo uma verdade parece que estou mentindo, sempre que digo uma mentira parece que conto a verdade. Para tomar o caminho errado é necessário dois caminhos. E se não existe um segundo caminho a escolher? Ah, a consciência, pássaro teimoso que canta como se fosse a própria árvore. É tarde para mim, cedo para eles. Posso estar interrompendo e modificando uma história de amor. Se a pessoa espera ardentemente a carta? Se a correspondência não chegar e produzir estremecimento em ambas as partes? Se estou separando um casal que demorou para tomar uma atitude? Não sei o que fazer. A carta em papel rosa não me reconhece e não fala mais comigo.

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