quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

12/14/2004 02:01:44 PM

- NÃO TENHO CABEÇA PARA PENSAR

- ENTÃO PENSE SEM ELA


Gravura de El Greco


Fabrício Carpinejar





Quando pequeno, a última colher de comida nunca era a última. Percebe-se que era no máximo a antepenúltima. A última colher não existe. Uma forma de convencer a criança a mastigar a contragosto. Uma forma de persuadir que é o fim para chegar ao fim. É uma das primeiras mentiras involuntárias dos pais, decorrente da generosidade de ajudar. A última colher deveria significar que é 'para valer", mas identifica-se em seguida que não vale nada e a papinha continua insistindo em entrar. A partir desse momento, o último passa a criar o gosto de não ser o último. Entende-se o último como algo que não acontecerá. O último - na verdade - é um começo disfarçado. O último amor. Não há como declarar taxativamente o último amor, porque o desejo admira a incoerência, a contradição, o ciúme. Como já ouvi gente, depois de uma desastrada separação, afirmando que não amaria mais e está hoje no terceiro casamento. Talvez tenha sido último amor naquele dia. Não se termina nada: amizade, livro, filme, casamento. Fica inacabado, adormecido, avulso. Temos a incapacidade natural de findar qualquer coisa. Quem pensa que terminou a relação, como se terminar a relação fosse mérito de quem disse primeiro, apenas adiou seu final. Haverá uma gaveta para colocar o que não se concluiu, um armário para esconder o que não serve mais, uma garagem para o imprestável até o momento. Não conheço sucata que não atenda alguma emergência. O último é somente um início mais convicto, em voz alta. De igual modo, um minutinho é uma hora, um momento é uma eternidade. O último cigarro, por exemplo, é a ladainha do anti-social, que avisa os amigos que está parando, faz um carro de som de sua abnegação e não larga o vício. Encontra logo um problema para justificar a retomada. Num bar, a situação é a mesma. A última cerveja não será a última, a saideira se repete tantas vezes como as colheradas na boca da criança. O último é um fundo falso. Os pais replicam ao filho que é a última vez e não é a última vez. Facilmente desistem da despedida. É a última vez que levará o filho ao restaurante. É a última vez que vai à praça. É sempre a última vez e a criança entende que amanhã voltará tudo ao normal. Na hora de escutar o "último" o ideal é pensar "de novo".

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