quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

11/30/2006 01:10:05 AM

UMA AVE-MARIA

Arte de Gerhard Richter


Fabrício Carpinejar





Quando ligo para um amigo, cedo da manhã ou tarde da noite, e escuto sua dicção anasalada, teimosa, dormindo, desligo no ato. Por covardia, bato o telefone na cara da criatura. Não consigo raciocinar que acordei de vez o coitado e é tarde para fugir. Desligo. O cumprimento desaparece no tambor da ligação. Não prevejo que ele pode ter me reconhecido. Desligo no susto, no afã de não incomodar. O pudor de ser inconveniente impede o melhor juízo, e não percebo que fui grosseiro abortando a chamada sem me identificar. Se o cara tentar dormir depois, terá um pesadelo. Se acordar depois, será um pesadelo. Faço de conta que não telefonei. Torno-me um trote, um telefonema anônimo. Sou uma criança assustada com a própria respiração. Enfio-me, em seguida, debaixo das coberta da barba para me escurecer.


No final da aula, recebi a notícia de que uma de minhas alunas de Poesia havia falecido. Teve uma parada cardíaca aos 50 anos. Saudável, bonita, disposta, educada. Quase alegre. Quase porque seus olhos foram desenhados para a tristeza. As pedras e os cílios não seriam capazes de conter a inclinação de riacho. Seu pescoço a deixava ainda mais alta. Os cabelos armados de quem se demorava no secador. Maria Tereza. Conversei com ela na semana anterior, fez os exercícios, me entregou os temas. Maria Tereza. Ela recém havia ingressado na oficina. Compareceu a três aulas. Estava ali ao alcance de meu braço, de minhas pernas, de um giro da cabeça. Maria Tereza. Queria ter chegado mais perto. Mas juro que não sabia como chegar.


Ela permanecia calada ciscando frases do quadro-negro. As mãos arregaladas no caderno. Vejo o fundo vazio da sala, o lugar onde sentava, ao longe, para se proteger de mim. Sua mesa está limpa. Desmemoriada. Como uma muleta alugada que logo troca de dono. Ela não esqueceu a bolsa, não esqueceu o caderno, não esqueceu o livro, esqueceu de todo seu corpo debaixo da cadeira. Corro até a porta e tudo é ainda recente para falar. Estou aqui com sua letra viva e ela, morta. Seu nome vivo na lista de chamada e ela, morta. Não tenho para quem devolver minhas anotações ao lado de seus versos. Não entregarei seus trabalhos. Seus poemas esperavam uma resposta e agora eu aguardo sua pergunta. Poderia ser um bom-dia, poderia ser um olá, tudo que viesse de sua boca seria uma pergunta. Eu me contentaria com pouco, com nada, com flores amarelas do ipê na calçada, com o cheiro da cor. Antes era uma resposta, porque não suspeitava que era tarde. Que cada hora que passava comigo já era tarde. Estava me dedicando seus últimos dias e, seguro de nossa longevidade, confundi que seriam os primeiros.


Hoje tocou o telefone de madrugada. Alguém me ouviu e desligou rapidamente.

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