quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

11/24/2006 10:56:32 AM

FRANQUEZA PARA MACHUCAR

Pintura de Allen Jones


Fabrício Carpinejar





Os casais terminam se odiando porque eles se reduzem. Eles se apequenam e não reparam na dispersão destrutiva. Se no começo ambos enxergam apenas o lado bom e se apaixonam; com a convivência, tomam gosto pela agressão gratuita. Não que o lado bom tenha desaparecido, é que não tem mais graça.


Com o pretexto da franqueza, preparam o veneno. Há uma esperança enganosa de que o pedido de desculpas apaga a grosseira, que a compreensão abole a ofensa, que a cumplicidade é maior do que as adversidades.


Não fazem por mal, mas fazem. Espancam o primeiro que aparece pela frente. O primeiro que aparece é sempre um ou o outro. Afinal, são os únicos que estão em casa.


Como se conhecem perfeitamente, os dois passam a listar os defeitos numa discussão ou numa tola conversa. Como se os defeitos dependessem de reprise.


Ele dá uma opinião sobre o casamento e ela o desqualifica, avisando que ele não tem base moral na família para dizer isso. E mexe os galhos podres sobre sua cabeça.


Ela chega com mechas no cabelo e ele lembra que é a terceira vez em duas semanas que ela volta do salão com um novo corte.


Ele põe uma camisa listrada todo feliz e ela pergunta se ele sairá desse modo ridículo.


Ela está nervosa com as contas do cartão e ele vem com um sermão de que gasta o desnecessário, sendo que parte do superficial são o sorvete e as frescuras que ele pede no mercado.


Ambos estão jantando com amigos e a mulher confessa que é impraticável dormir com os roncos dele. O marido, sexy e solto até o momento, quase morre de apnéia com o drinque.


Ela narra sua adolescência e os lugares que freqüentou e o cara consegue ficar com ciúme dos fantasmas e perguntar pormenores.


Ele recebe um elogio de uma mulher e ela, de pronto, chama a menina, que nem conhece, de piranha e interesseira.


Ela estaciona o carro numa brecha impossível. Ao invés de elogiar, ele declara que é o mínimo que se pode fazer depois de 45 horas de auto-escola.


Ele se sente um pouco mais musculoso, ela logo encontra com as mãos:

- Ainda tem uma barriguinha.


Ela compra lingerie e se assanha de perfume, ele confessa que teve um dia cheio. Um dia cheio que não apaga a televisão.


Ele tenta dançar, depois de inúmeras reclamações de que não se mexe em festas.

- O que você achou?, pergunta, eufórico, depois da balada.

- Melhor ficar parado, ela diz, categórica.

A mulher percebeu que ele se soltou exclusivamente nas músicas gays. Os braços histéricos e as pernas duras.


Ela é convidada para uma festa dos colegas e ele transforma sua ida em favor e sacrifício. Claro que ela não se diverte, termina entretendo o marido que não deseja se enturmar.


Os casais não necessitam se bajular, mentir, simular quando não se tem vontade. Mas é masoquismo não deixar que o desejo se torne memória, reprovar de modo permanente quem amamos, rebaixar quem depende de uma delicadeza. Ninguém ajudará sua companhia falando a verdade, mas sendo a verdade.


Intimidade é gentileza.

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