quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

11/19/2004 07:19:27 AM

BARBADA

Gravura de Miró


Fabrício Carpinejar





Não era buço, mas bigode. Bigode grisalho, grosso, maior do que a boca, maior do que a faca de casa. De mulher, a saia de arrastar, simples como pano de chão. Do homem, uma barba que confundia até o marido. Não queria entrar no circo com medo de encontrá-la. Não queria aparecer no supermercado com medo de encontrá-la. Não queria visitar minha vida com medo de encontrá-la. Não que seu rosto fosse ofensivo. Terno, suave, porém a barba superava suas sobrancelhas de casaco de lã. A barba asperava, exasperava. Barba de inverno, suada dos pratos do almoço e da janta. Como uma fotomontagem, Mona Lisa com o bigode de Salvador Dali. Ela não a tirava, não existiam fitas adesivas, salão, depilação, não existiam. Existia o sutiã peludo na boca e os boatos do interior. Não me recordo da cor dos cabelos, dos cabelos da cor. Ela passava sempre acenando e ninguém a respondia. Meu pai inventou a história da mulher com barba para me assustar e comer tudo na refeição. Quando meu pai viu a mulher de barba ficou pálido como um toco de vela roubando promessas das demais velas. A mulher de barba sentava na última fila da igreja e os meninos a incomodavam perguntando se era homem ou lobisomem. A mulher de barba e seus tornozelos da tristeza. Não uma tristeza de morte, mas de vida contada com os trocos. Deus exagerou na cobrança. Manca dos dentes. O bigode escondia a falta dos dentes. O bigode escondia sua ladeira de pedras quebradas, impossível de caminhar sem o rancor do tropeço. O bigode escondia o riso e a entristecia dos risos alheios. O bigode como um pescoço de cavalo. O bigode como um avental da boca para não sujar o hálito. Bigode como um hábito antigo. O bigode perfeito, aparado, de festa, no rosto errado. Qualquer mulher se apaixonaria no escuro. Qualquer homem puxaria assento e pediria uma branquinha. Uma imperfeição caprichada. Não sei seu nome, bastava dizer A Mulher de Barba e todos reconheceriam. Cuidava da roupa da vizinhança. Os tecidos estalavam de lisos. Perfumados, vaporosos. Camisas de três botões nas mangas não ostentavam vincos depois de suas mãos. Entregava as encomendas com ramas de hortelã. Só que os clientes procuravam fios do bigode nas vestes para incriminá-la. Minha irmã não cortava suas tranças, que tapavam a bunda. A Mulher de Barba trançava os lábios e sua religião das ofensas. Não vou ao céu porque no meu bairro houve uma Mulher de Barba. Fugia dela como quem carrega o diabo no corpo. Dei carona ao diabo que atravessou o corpo. Coincidiu com minha entrada na escola. Minha mãe me recomendou só uma coisa antes de entrar nas aulas e me alfabetizar: "não podes mais peidar". Completou: "se tiveres que peidar, que seja silencioso". Não esqueci da lição. Sofro de prisão de ventre até hoje. Disciplinei meu estômago, não a minha letra. Não consigo ir ao banheiro a não ser em casa. A Mulher de Barba me entenderia. Seu marido se envergonhou cada vez mais. Torneiro mecânico. Não almoçava com os colegas na sombra. Não sugeria piadas com receio de ser a piada. Zombavam dele como homem que casou com homem. Um dia, ele largou tudo na fábrica, pegou sua lâmina e correu em direção à residência. Atravessou a praça salivando dos olhos aos pés. Armado de explodir os nervos, amarrou a Mulher de Barba na cama, encheu-a de espuma, banhando sucessivamente o ferro na bacia debaixo da cama, e raspou com pressa o bigode. Ela urrava como um boi sem pasto. Um boi sem a chuva do pasto. A cidade parou o que fazia para escutar o urro. O urro voou, um corvo depois do tiro. A Mulher de Barba nunca mais saiu de seu quarto. Fala-se que ficou com uma cicatriz enorme. A cicatriz virou sua barba de pele. Inchaço do ódio. Ela a tocava, a acariciava de noite, como um segundo sexo. E descobriu o prazer sozinha nesse e nos outros mundos.


(crônica do Rascunho, novembro de 2004)

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