quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

11/11/2004 11:18:13 AM

ESTILHAÇOS DE VIDRO

Gravura de Lucien Freud


"Estas frases de amor que se repiten tanto

no son nunca las mismas"

Pedro Salinas


Fabrício Carpinejar





Quando um copo quebra, por mais que se recolha os fragmentos, algo ficará piscando no chão no dia seguinte. O vidro faz seu colar para vender ao sol. Algum estilhaço sobrará ao longe, pronto para ferir o pé desmemoriado. Um vaga-lume sem o brilho do ruído. Como um anel solteiro, divorciado, viúvo. Não se lava plenamente a memória, não se varre plenamente o piso, não se isola a verdade. Dizer que uma relação terminou porque se quer conclusa. Dizer que se esqueceu porque não se permite fiascos. Dizer que não voltará a fazer é inútil. A delícia dos erros é justamente a reincidência. Nossa solidão não é filmada, porém nunca chora sozinha. A vida suja as mãos, suja a boca, suja os olhos. Suja de honestidade o que não se enxerga. Viver é se cortar. Não contar os riscos. Não há como amar sem dar tempo ao ódio. Não há como odiar sem dar tempo ao amor. Vivo a esperança que a dor seja sempre menor do que minha esperança. Vivo a expectativa de que o ciúme seja maior no passado do que no futuro. O corpo se empalidece para pedir ajuda. O pessimista, ao julgar tudo, se condena. A dúvida diverte ou divide. Sempre se terá a versão de um fato, não a verdade. A verdade é o sentimento do fato, a comoção da incerteza. Paixão é não saber. Quando se sabe, é amor. Não adianta sobreviver aos problemas, mas enfrentá-los como virtudes. O tédio nivela por baixo os mistérios, toma tudo como se fosse a mesma coisa, desconhecendo a surpresa e a descoberta. O tédio exercita a decência sem conhecer a pobreza. Caráter se escolhe, moralidade condiciona. Os pensamentos só surgem da ruína de uma lembrança. Faço um novo brinquedo com meus desastres O que não foi experimentado não se discutiu. Seco a minha testa com a manga da camisa. O fracasso não existe, o que existe é o medo do fracasso. Até o medo tem uma porta de fundos. Meu quarto é um tanque de pedra onde lavo as frutas. Um arroio que não termina no corredor. Quero pecar sem intervalo para o perdão. Amar como aguardente. O olhar precisa da gravura para comparar a letra. Invejo a sombra dos peixes. As brasas têm mais escamas do que a água. Os astros anotam de pé seus poemas. Toda árvore surge quando a estrada soletra um nome estrangeiro. Devolvo a luz emprestada em rosto. O dedo bem pode ser um pássaro de coleira. As mãos pequenas de meu filho se dilatam como as pupilas. Entre o que digo e o que como, não palito os dentes. Assim que fecho a boca, as palavras se entreabrem.

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