quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/8/2006 09:41:09 AM

ESCONDO O AMOR NA AMIZADE

Pintura de Paul Klee


Fabrício Carpinejar





Eu respirava pela boca. A boca obrigada a falar e respirar ao mesmo tempo. O nariz preguiçoso, mais alto e forte, mandava nela. E ela obedecia.


Não descansava os lábios. Entreabertos. Cumprindo um turno pela voz e o outro pelo sopro. Os dentes como lápis apontados pelo vento.


Os lábios sem cola, sem comissura, sem liga. Os lábios levantando-se ao beijo todo sempre. No meio da escada.


Meus lábios não dormiram sequer uma vez em minha vida.


Do mesmo modo que trocava a boca pelo nariz, confundia a amizade com o amor.


Não amei nenhuma mulher pela atração simples e direta. Pela beleza fulminante. Pela sedução lacônica e apressada.


Não amei uma mulher à primeira vista. Meus amores foram a prazo, bem parcelados. Com o carnê cheio de folhinhas. Conversados longamente para encontrar a quietude. Observados, desesperados, lentos. Segurar inicialmente os braços, depois as mãos, bem depois o rosto.


Amei pela convivência, pelas afinidades, pelas discussões, pelos cantos da chuva, pelo sol pintado do meio-fio. Amei na continuidade, no alinhamento do riso, nas brincadeiras involuntárias. Amei ao expor confidências ¿ as confidências já eram provas de que amava. Desabafei muito antes de amar, pedi muito ajuda antes de amar, fui incompreendido muito antes de amar.


Amei durante a semana mais do que nos finais de semana.


Amigo leal e pontual de uma menina, amigo inseparável, não tinha jeito: queria namorá-la. Não conseguia parar o corpo. O amor aparecia como compreensão inteira, dedicada. Não desejava uma mulher que não me entendesse, desejava quando ela me entendia. Percebia o amor como um segredo desde a escola. Um amigo secreto. Ele gosta de alguém e ninguém sabe. Ela gosta de alguém e ninguém sabe. Guardava-se uma paixão com coração e iniciais, sorrateiramente, na última página do caderno de matemática. Não era assim?


Escondia o amor dentro da amizade. Não havia melhor esconderijo.


A amizade me levava ao amor. Mas o amor, logo que encerrava, renunciava a amizade do começo. Não dava para voltar à amizade quando me declarava. Para continuar, a amizade não pode ter a consciência do amor. A amizade termina se o amor surge, a amizade termina igualmente se o amor acaba.


Não mudei com o tempo. Amo pela amizade, respiro pela boca, converso pela respiração.

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