quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/30/2005 11:49:47 AM

CADERNO 2 O ESTADO DE S.PAULO

Domingo, 30 de Outubro de 2005


SELEÇÃO DE POEMAS PARA CANTAR

Antologia Veneno Antimonotonia privilegia compositores contemporâneos e esquece jovens poetas


Fabrício Carpinejar*

Especial para o Estado





Quando se chama um músico de "poeta" é, invariavelmente, uma declaração de competência. Quer dizer que ele é capaz de realizar uma composição inspirada, efusiva e inteligente. Quando se caracteriza um romancista de poeta nem sempre é um agrado, trata-se de uma forma de reduzir seu campo de ação e leitura. Poeta virou um adjetivo, não mais um ofício. Ele é só elogio fora da literatura.


Não é por acaso que os compositores Renato Russo e Cazuza são considerados os grandes poetas da década de 80. Não é por acaso que ao comentar a trajetória de Chico Buarque ou Caetano Veloso a primeira palavra que vem à mente para sintetizá-los é justamente poeta. Chico surge como o poeta que entende a alma feminina, Caetano como o poeta múltiplo e vanguardista. O contrário não ocorre: raro enxergar um poeta ser entronizado como um virtuoso letrista ao escrever obras de poesia.


É interessante pensar em tudo isso ao ler a antologia Veneno Antimonotonia, organizada pelo excelente Eucanaã Ferraz (Desassombro e Rua do Mundo), que se propõe a reunir os melhores poemas e canções contra o tédio. A polêmica surge naturalmente à medida que letra e poema estão lado a lado, em igualdade de condições e temperatura. Se autores debandaram, nas décadas passadas, para a letra de música, inspirados por Vinicius de Moraes, à procura de um maior público e apelo, retornam com força total ao gênero da poesia, em busca da confirmação da crítica. Antonio Cícero e Wally Salomão são exemplos entre dezenas de carreiras embebidas na música e amadurecidas nos odres das canções que regressaram ao livro bem mais tarde. Ser poeta virou moda entre os compositores. Dá status e fornece uma condição de perenidade às suas visões de mundo. Ser poeta apenas não é moda entre os próprios poetas.


Veneno Antimonotonia cumpre seu papel de leveza e prazer, apesar de toda antologia produzir a sensação incômoda de um imenso shopping de estilos e variações. Não ensina, entretém; não abala, conforta. Extremamente agradável de ler, é disposta em seções de linha espiritual que alternam versos e estribilhos como "Eu tomo alegria!" e "De repente a gente brilhará". São 20 autores, dentre eles sete compositores (Adriana Calcanhotto, Aldir Blanc, Caetano Veloso, Cazuza, Chico Buarque, Gilberto Gil e Noel Rosa), dez poetas (Ana Cristina Cesar, Armando Freitas Filho, Carlos Drummond de Andrade, Ferreira Gullar, Francisco Alvim, João Cabral, Manuel Bandeira, Mario Quintana, Murilo Mendes e Oswald de Andrade) e três poetas-compositores (Antonio Cícero, Wally Salomão e Vinicius de Moraes).


Uma das virtudes da publicação se refere à adoção de poemas com uma musicalidade intensa, que fariam bonito musicados. Verifica-se a unidade pela maleabilidade sonora dos versos, que reforçam a qualidade poética das letras. Não há um fosso semântico entre poema e canção. Poema é transposto também como canção e canção como poema. O conjunto representa mais poesia para cantar do que música para ler. Surpreendente a combinação de Manuel Bandeira (Não Sei Dançar) com Gilberto Gil (Barato Total). Em ambos, a percussão da algazarra e o deslumbramento confessional. Bandeira e Gil dançam em igual ritmo, como que sintonizados em um único headphone. Os versos bandeiranos "Uns tomam éter, outros cocaína./ Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria" completam a batida "Quando a gente está contente/ Tanto faz o quente/ Tanto faz o frio/ Tanto faz", de Gil.


Das problemáticas, a escolha privilegiou de modo ostensivo a letra de música contemporânea. Uma ilustração: cinco composições de Adriana Calcanhotto ombreiam com outros cinco grandes poemas de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. Têm o mesmo peso, o mesmo espaço, o mesmo valor de acordo com a coletânea. O que é curioso, pois João Cabral e Drummond garantem legitimidade e emprestam valência à letrista. A companhia dos dois clássicos alça Calcanhotto a um estágio de maestria na linguagem, dado discutível, já que não era o propósito dela fazer poesia e sim música. Uma explicação possível é a inclusão de meia dezena de trabalhos de cada autor e a proporcionalidade equânime entre eles. Entretanto, Noel Rosa está representado com duas músicas e não vinga a hipótese. Se a luta era contra o marasmo independente da brochura, caberia entrar no time Dorival Caymmi, Paulinho da Viola, João Gilberto, Ary Barroso, Tom Jobim (este último, com certeza). Um pouco de samba e bossa desses pensadores musicais funcionariam como antídotos ideais à pasmaceira, afora a compatibilidade genética deles com o lirismo. Paulo César Pinheiro, duplamente compositor e poeta, Chico César, Carlos Capinam, Paulo Leminski e Vitor Ramil teriam condições de incrementar o elenco e gerar choques culturais de outras regiões. Assim como Renato Russo é uma falta irreparável. Diante de critérios etéreos da seleção, a conclusão é que predomina o gosto pessoal do organizador.


Poderia ter sido feita uma inversão e valorizar a poesia contemporânea, o que não foi adotada. Colocar Paulo Henriques Britto (outro ausente), autor de Trovar Claro e Macau, na companhia de Noel Rosa. Não seria possível? Percebe-se, porém, a preocupação da antologia em enfatizar a letra de música atual em detrimento da poesia jovem. Talvez seja um recurso para levar ouvintes de MPB e rock a apreciar leituras dos poetas. Um embalo mercadológico, algo como: "Se gosta de Cazuza, não deixe de ler Murilo Mendes." Mas não leva esses mesmos ouvintes a conhecer a produção e inquietação de poetas que não aparecem em questões de vestibular e não são estudados em sala de aula. Os poetas mais recentes coletados são Armando Freitas Filho, Francisco Alvim e Ferreira Gullar, todos acima dos 60 anos, sem nenhuma suspeita, com antologias publicadas e consagração estética. Nisso não houve o risco e a ousadia de apostar em novas vozes. E a rotina ganhou novamente.


* Fabrício Carpinejar é poeta e jornalista, autor de Como no Céu/Livro de Visitas (Bertrand Brasil), entre outros

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