quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

10/29/2004 11:49:46 AM

MUSEU DE ACHADOS E PERDIDOS

Gravura de Natalia Goncharova


Fabrício Carpinejar





Não aprecio a arrogância dos clássicos, prefiro a conversa alta dos sebos. Se alguém quer encontrar um amigo desaparecido, um amor antigo ou o próprio cachorro que fugiu de casa e nunca mais foi visto passe na Feira do Livro de Porto Alegre. A Feira é um museu de achados e de perdidos. Tem gente que a gente só encontra na Feira. Há cinco décadas é assim: uma bendição marcada, impossível de ser desfeita. Pode-se trocar telefones e endereços, inchar o peito de entusiasmo, combinar um churrasco, apresentar fotos 3x4 da família, prometer que ligará no dia seguinte e nada, passa um ano e lá encontraremos a pessoa no mesmo lugar que a deixamos, em algum ponto remoto da memória que é a feira. Colegas do Ensino Fundamental e Médio, faculdade, futebol, noite e andanças aparecem de repente entre uma barraca e um jacarandá, numa espécie de festivo juízo final. É como festa de aniversário, onde os penetras são os verdadeiros convidados. Amizades são retomadas instantaneamente, sem atualização do currículo. Tias surgem espalhafatosas, com bolinhos de chuva na bolsa, dizendo que já trocaram minhas fraldas e perguntando como posso ter crescido tanto. Parecem que desceram de um telhado, com o pára-quedas do vestido. O que me salva do branco, do lapso, da amnésia involuntária são os apelidos. Eu guardo um apelido para cada fase de minha vida. Contar com um rosto estranho tem suas vantagens, porque apresento mais nomes científicos do que a biologia permite. Dependendo do jeito que o interlocutor me chama, sei de onde conheço e de que lugar. É a muleta sonora, apesar de ainda mancar com ela. No miolo central, perto do Pavilhão de Autógrafos, é certo que algum assobio, grito e tapas nas costas vai me inundar de passado. E daí passarei a me esforçar para equilibrar os olhos. Começo a rir no lugar da fala. Risada demonstra intimidade e que estou ouvindo. Mas estou me ouvindo mais do que ouvindo, tentando descobrir quem é o sujeito que se expressa com domínio sobre minha história. Depois que me separo dele, dez barracas depois, é que me recordo. Fico com vontade de voltar atrás, correr, encontrá-lo e gritar seu nome bem alto, tal saguão de aeroporto. Moro na metáfora, o que não me dá muita clareza geográfica. Na Feira do Livro, eu me perco com freqüência para me localizar. Vou fazer uma coisa e termino cumprindo outra. Feira é falta de mapa. O livro que compro exala o cheiro das mãos de quem quase o levou. Os milagres não estão nas gavetas. Não volto para casa com troco. Não sobra nada de mim para boiar no Guaíba. Durmo de pé, escorado na estante.

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